20 - TODOS NÓS SOMOS DEMÓNIOS

 

Recordar como era a vida antes da Pandemia é um exercício que Sandra muito aprecia, ainda que o faça com um certo pudor. Há sempre o risco de, a meio da travessia, desabar. Hoje parece o dia perfeito para essa demanda interior, mas a tarde de passeio fora interrompida pela entorse de Miriam e por um aguaceiro impiedoso que as empurrou de volta ao abrigo.

Contudo, há qualquer coisa de inquietante nesse regressar constante ao passado. Sandra sabe bem que sempre que se entrega ao jogo da memória, algo de profundamente errado tende a emergir. Remexer nas águas paradas da lembrança pode despertar uma corrente obscura.

— O confinamento tem sido penoso — murmura, — É como viver dentro de uma cápsula do tempo, ou fazer parte de um B movie com orçamento miserável, onde os figurinos são trazidos de casa por atores falhados, todos eles trapaceiros de profissão.

Para que a evocação funcione, precisa de disciplina e atenção aos pormenores. É preciso sentir a textura da areia antiga, o sabor do sal na pele, a luz esmorecida sobre os ombros. A princípio, parece-lhe impossível. Mas hoje está determinada. Vai forçar a memória até ela ceder, até o passado a aceitar novamente.

É então que se vê numa tarde morna de setembro, adolescente ainda, caminhando sozinha no areal extenso da Figueira. Saiu da praia do Relógio e seguiu até à do Teimoso, com o pôr-do-sol a acompanhar-lhe os passos desde Buarcos. O dia já se dissolvia em sombras quando decidiu inverter o percurso. Não queria que aquele dia acabasse. Queria arrastá-lo até à última réstia de luz.

Parou várias vezes junto à rebentação. O mar parecia o mesmo de sempre, e no entanto, algo nela já era diferente. Nesse fim de verão, despedira-se definitivamente da infância. Crescera quase doze centímetros naquele ano, e acordara nesse dia com a certeza de que algo iria acontecer. Sentia-se leve, quase etérea. Talvez uma parte do seu peso tivesse sumido durante a noite.

O outono insinuava-se já na manhã fria, húmida, sem um raio de sol até ao meio-dia. Estava gelada. A mãe dissera-lhe para pôr o cobertor, mas ela, como sempre, ignorara o conselho.

Na sua bolsa de praia coabitavam a toalha, o bronzeador e As Brumas de Avalon, que ela tinha requisitado na biblioteca da escola para ler durante as férias. A leitura era um ritual sagrado. Lia como quem invocava espíritos, embrenhada na história como se de um feitiço se tratasse. Identificava-se com a Rainha Gwenhwyfar. Sonhava ser como ela. Na areia, com o livro no colo, desaparecia do mundo. Fizera a escolha acertada, e sorriu com serenidade quando terminou a leitura da obra no último dia daquele verão.

Com o fim das férias a aproximar-se, sentia-se dividida. Parte dela queria perpetuar aquele tempo suspenso. Decidiu então caminhar até ao Teimoso, sem esquecer de passar junto ao cemitério de Buarcos. Era um desafio que prometera cumprir. Tinha de saber quem eram as vozes que a inquietavam nas noites mais longas.

A noite caíra de vez quando empurrou o portão de ferro do cemitério. O ruído agudo pareceu rasgar o silêncio. Assim que deu o primeiro passo, sentiu um arrepio. Escutava passos. Lentos. Deliberados. Alguém, ou alguma coisa, movia-se entre as campas.

Agachou-se junto ao maior dos jazigos à espera do regresso do silêncio. Esperou. E viu. Um vulto. Depois outro. Quatro, no total, suspensos entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Um deles apontou para ela. O coração quase lhe rebentou no peito. Sandra perdeu o peso que lhe restava e a meia-lua iluminou o seu corpo pequeno.

Subitamente, teve uma visão aérea, como nos seus sonhos antigos. O corpo flutuava por cima das lápides. Lia os nomes com nitidez, até encontrar um que era o seu. E ali a visão acabou.

Revirou os olhos, escutou o seu nome. Uma voz feminina. Familiar. Sentiu um puxão violento. Assustada, ergueu-se de um salto e correu. Saiu do cemitério como um animal em fuga, em direção à avenida. Alguns carros travaram a fundo para não a atropelar.

Já em casa, atirou-se para a cama. Helena, a sua irmã-boneca, esperava-a como uma aparição. O rosto imóvel parecia sorrir-lhe. E então começou a falar-lhe, com aquela voz sem som:

— Uma menina foi abandonada pela mãe numa floresta. A mãe ateou fogo. O corpo da menina só foi encontrado dias depois, pelos bombeiros.

Ordenou-lhe que escrevesse a história num pedaço de papel e que o guardasse entre as páginas de um livro. Que nunca a esquecesse.

Sandra fechou os olhos. Só por um instante. Queria dormir. Queria calar os ruídos da noite. Já nem conseguia sentir o corpo. Os músculos tinham deixado de lhe obedecer.

Havia algo de errado, de muito errado naquelas visões.

Antes de adormecer, vislumbrou, com o olhar embaciado, pedaços de dedos carbonizados da sua irmã-boneca espalhados pelo quarto.

Helena estava dispersa por toda a parte.

 

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