19 - CEMITÉRIO DE CINZAS
Dizem que só pessoas loucas ou depressivas são capazes
de atear fogos por puro prazer. Fazem-no abrigadas pelo silêncio espesso das
madrugadas, pois apenas aí se conseguem escutar, Depois entretêm-se a observar
as labaredas a devorar colinas e a carbonizar árvores, esses fragmentos de um
pesadelo antigo que desejam apagar.
Os olhos de Helena refletiram toda a angústia do dia
em que o incêndio consumiu metade do bosque. As chamas lambiam o denso arvoredo
da colina, e o fumo chegou até ela, envolvendo-a num nevoeiro espesso, coberto
de cinzas. Se o fogo tivesse subido um pouco mais, teria acabado com ela sem
cerimónia.
Triste sorte, a de Helena, deixada ali para morrer
pela própria família. O incêndio não fora acidente, nem mera negligência. Fora
fogo posto, com o propósito silencioso de a confrontar com a iminência da
morte. O perigo imprimiu um negrume novo ao seu olhar, mais baço, mais cansado.
Animais fugiam desesperados à sua volta, saltando sobre raízes e pedras. O
calor fazia-lhe doer a pele, o rosto escureceu e o cabelo tornou-se áspero,
quebradiço. Faúlhas abriram buracos no tecido do vestido e nos sapatos gastos.
As cinzas colaram-se-lhe ao corpo como uma segunda pele suja.
Helena suspeitou de Albertina quase de imediato A mãe
de Sandra nutrira uma hostilidade latente contra a cumplicidade entre as duas.
A sua filha mostrava uma alegria que se tornava contagiante sempre que a
“irmã-boneca” estava por perto. Conversavam. Eram confidentes, e era isso que Albertina
invejava. Não lhe fora difícil concluir, por raciocínio enviesado, que era
justamente esse afeto que precisava ser queimado.
O ódio moveu-a. E foi ele que a fez abandoná-la ali,
naquele bosque agora em chamas.
Helena gostava de imaginar que Sandra era sua irmã, a
única criatura humana verdadeiramente bondosa que conhecera. Aprendeu depressa
que aquilo que se esperava dela era deixar-se embalar, ouvir as histórias que a
menina inventava e dormir junto dela, acalmando-lhe o sono atribulado.
Tornou-se a sua guardiã silenciosa, e logo no primeiro dia partilharam o leito
como velhas amigas. Sandra tratava-a com devoção, alisava-lhe o vestido, entrançava-lhe
o cabelo por horas, segurava-lhe a mão.
Era linda, Helena. Uma boneca de sobrancelhas
finamente desenhadas, cabelo loiro encaracolado, lábios arqueados, nariz
pequeno e levemente empinado. Os olhos inteligentes destacavam-se no rosto mais
meigo. Entre todas as bonecas, nenhuma era como ela.
Houve um dia em que Sandra, movida por um impulso, lhe
arrancou a cabeça. Dentro do corpo descobriu um compartimento onde começou a
esconder pequenos segredos. A cabeça não voltava a encaixar com facilidade. Com
as lágrimas quase a nascer, a menina conseguiu, por fim, ajustá-la no orifício
circular com o cuidado de quem reconhece um ritual. Ter esse poder de separar o
corpo da cabeça foi uma descoberta que a marcou. Nenhuma outra boneca possuía
semelhante propriedade.
Helena, por seu lado, tinha gostos estranhos.
Deliciava-se com o cheiro de frutas ácidas e enlatadas, sabão azul e branco,
borras de café. Adorava tintas, vernizes, aguarrás, e o aroma doce de donuts acabados de cozinhar. O cheiro
de ovos estrelados com salsichas, bacon, batatas fritas e torradas saltando da
torradeira punha-a feliz. Mas nenhum odor a enternecia tanto quanto o perfume
suave do corpo de Sandra após o banho.
Naquele dia, coberta de cinzas, Helena só pensava no
que lhe aconteceria se o fogo chegasse ao topo da colina. Quando o vento mudou
de direção e desviou as chamas, suspirou, exausta. Sacudiu as mechas soltas do
cabelo queimado para trás.
— Isto não faz sentido nenhum — murmurou. — Pensei que
seria mais fácil encarar a morte de frente. Mas o vento, meu velho amigo,
decidiu salvar-me sem sequer me perguntar se eu queria.
Ficou ali, imóvel, mordendo os lábios. Os olhos
escuros brilhavam sob o rosto farrusco. Pensava em tudo o que lhe sucedera.
Apeteciam-lhe donuts, era sempre assim quando sentia o peso do mundo. Um com
cobertura de chocolate e baunilha teria feito maravilhas naquele momento.
— Estou cansada de estar aqui, sozinha. Estou farta...
— disse, com a cabeça tombada. — E aborrece-me ficar sempre no mesmo lugar,
encostada a este pinheiro. Talvez fosse melhor deitar-me no chão.
O sol nasceu rubro, entre o fumo e as cinzas. O
incêndio, inquieto, seguiu outras serras e poupou-a mais uma vez. A cabeça de
Helena começou a rodar sobre o pescoço, igual a uma coruja. Girou dez vezes, em
vãs tentativas de se desencaixar do corpo. Como Sandra fazia, quando queria
esconder algo importante.
— Já sabes que tens de me visitar, Sandra — disse ela,
com voz etérea. — Agora que a Pandemia parece acalmar, precisas de vir. Aqui é
o meu cemitério, entre cinzas, mas não quero ser sepultada debaixo deste
pinheiro.
Havia loucura na sua fala, mas também ternura e
saudade.
— Albertina deixou-me aqui a apodrecer. Só o Jaime
poderá ajudar-te. Presta atenção ao mapa turístico que hás-de encontrar na
caixa do correio. É detalhado. Se o souberes interpretar, virás até mim.
Sandra, por seu lado, ainda não conseguia afastar a
apreensão da Pandemia. Não sabia quando seria vacinada. A Páscoa ainda teria de
ser passada em confinamento. Tentava manter-se sã caminhando com Miriam, três
vezes por semana. Era importante escapar e
esquecer-se do trabalho que se acumulava
Treze dias seguidos sem sair. Encomendava tudo por
telefone ou online. Questionava-se se
não estaria a viver uma ilusão, uma espécie de mentira global de primeiro de
abril.
Na manhã em que saiu, sentia o corpo preso. Ao fim de
uma hora de caminhada, os pés dormentes, as pernas inchadas.
— Que tal? — perguntou a Miriam. — Não esperava ficar
assim tão mole. A Pandemia fez de nós prisioneiras de jaulas domésticas.
Miriam não respondeu. Estava ausente. Algo dentro dela
tinha estalado e fez um som metálico, uma interrupção elétrica no sistema.
Sandra percebeu.
— Ninguém sabe quem é, Miriam. Não agora. Talvez
sorrir nos salve. O meu Mestre dizia que rir é essencial. Temos de rir como
idiotas, se for preciso.
Miriam ficou para trás. Tinha tropeçado no passeio.
— HAU! Fiz uma entorse... Merda. Não sei se consigo
continuar.
Sentaram-se num banco selado do parque. Um gesto simples,
mas com a doçura de uma pequena transgressão. Sandra pousou a perna de Miriam
sobre a sua e começou a massajar.
Foi então que um aguaceiro tombou sem aviso. O vento
aumentou.
— Agora já não escapamos à molha... e alguém se
esqueceu de fechar as janelas — disse Sandra, sorrindo.
— Não me apetece sair daqui. Vamos esperar que a chuva
passe — respondeu Miriam, finalmente tranquila, como se aquele banco molhado,
sob o vendaval, fosse tudo o que precisava.
Comentários
Enviar um comentário