26 - A ÚLTIMA MALA DE GERTRUDES

 


Não foi de um dia para o outro. Nenhuma fuga verdadeira acontece assim.

A última noite de Gertrudes começou muito antes de ela fazer a mala. Começou no silêncio que se instalou entre ela e Faustino depois da estreia daquela peça francesa, quando ele não regressou a casa à hora habitual. Começou, sobretudo, no momento em que a neta lhe perguntou se as sereias existiam mesmo, e ela não conseguiu responder.

Existiam, sim, mas não naquele mar.

Sentou-se na beira da cama. O quarto parecia mais pequeno, encolhido pelo peso das ausências que se acumulavam nos móveis. Sandra dormia na divisão ao lado. O seu respirar leve era o único som vivo na casa.

Durante muitos anos, Gertrudes foi mais sombra do que presença. Apagava-se como quem faz da invisibilidade uma vocação. Foi educada a acreditar que a força das mulheres residia no silêncio, na capacidade de resistir sem ruído.

Mas o corpo tem memória. E a alma, por mais quieta que se finja, também.

A verdade é que Gertrudes começara a esquecer-se de si muito antes de Faustino se enamorar de Genoveva. Esquecia os poemas que amava, os livros que queria ler, as frases que lhe surgiam do nada e que não ousava dizer. Acordava a meio da noite com palavras suspensas na garganta, mas não as partilhava com ninguém. Engolia-as, geladas, antes de voltar a adormecer.

E naquele dia percebeu que não era apenas o marido que se apaixonara por outra. Ela também deixara de se escolher.

Genoveva fora apenas o catalisador. A faísca no barril. A atriz sem talento que lhe roubara as falas no palco da própria casa.

Mas a decisão de partir não foi por ciúmes. Nunca foi. Ao olhar-se ao espelho, já não se reconhecia. O seu reflexo parecia-lhe o de uma figurante na vida dos outros, tão frágil quanto os palhaços de Murano que Sandra acabaria por estilhaçar.

 

A última gota, invisível mas definitiva, caiu num domingo.

Faustino estava sentado no sofá, camisa entreaberta, a ler em voz alta um poema de Pessoa. Dizia que era para decorar para a peça seguinte. Mas ela sabia que não era isso. Recitava-o para seduzir Genoveva. Cada sílaba era uma flor arrancada do jardim das suas promessas. Gertrudes ouvia e calava-se, como sempre, fingindo não escutar.

No entanto, naquele dia, algo se quebrou.

— Acabou.

Faustino não percebeu. Nem lhe perguntou o que ela queria dizer. Continuou a ler, alheado. Não ouviu o fim.

Naquela noite, Gertrudes esperou que todos dormissem. Depois fez a mala.

Levou pouco. Roupa interior. Dois vestidos. O retrato de Sandra, pequeno, tirado na escola primária. Uma fita de cabelo azul. Uma caixa de madeira com cartas antigas. E o batom cor de vinho.

Durante dias, ainda pensou que poderia resistir… mas naquela noite da revolução, usou um batom cor de vinho. Pintou os lábios, no quarto, à frente do espelho, e chorou quase uma hora.

Depois partiu.

Gertrudes não pensava regressar.

Caminhava concentrada nas pedras da calçada, que lhe pareciam sussurrar promessas de amizade eterna. Reparava nos muros com heras, nas roupas penduradas nas varandas, nos relógios das montras. O cabelo, mesmo grisalho, ainda lhe emoldurava o rosto com muita graça.

Partiu de madrugada. A estação estava deserta. O comboio chegou com atraso. Comprou bilhete para uma cidade onde ninguém a conhecia. Quando se sentou no banco da carruagem, o coração batia como se quisesse fugir antes dela.

Lá fora, os trilhos gemiam. Os campos desfilavam, velozes. A chuva começou a cair em diagonal. Gertrudes fechou os olhos. Pela primeira vez em décadas, respirou fundo sem medo de ser ouvida.

Sentia-se viva. E não sentia culpa.

Sentia, sim, um estranho alívio.

A primeira semana foi feita de silêncio. Instalou-se num quarto alugado a uma viúva simpática que não fazia perguntas. Cozinhava para si mesma. Lia. Caminhava. Sentava-se em bancos de jardim. Observava os casais, os pássaros, os cães vadios.

À noite, escrevia num caderno. Escreveu tudo o que nunca dissera. Escreveu cartas que não enviou. Escreveu até doer.

Ao oitavo dia, cortou o cabelo.

Ao décimo, inscreveu-se numa aula de cerâmica.

Ao décimo quinto, riu-se alto num café. Sozinha.

Nunca deixou de pensar em Sandra. Sentia falta dos seus olhos atentos, das perguntas inesperadas, da forma como lhe mexia no cabelo quando estavam juntas no sofá.

Mas sabia que não podia voltar atrás.

Sabia que, ao partir, deixava uma dor.

Mas deixar-se ficar seria morrer lentamente. E isso não podia ensinar à neta. Isso não era legado.

Sandra precisava de saber que fugir também pode ser amor. Amor-próprio.

Há roturas que salvam. E partidas que impedem mortes lentas.

Um ano depois, escreveu-lhe uma carta. Enviou-a para casa da filha, não para a de Faustino. Nunca soube se Sandra a recebeu. Nunca obteve resposta.

Mas escreveu-a, porque precisava que a verdade fosse dita, mesmo que em surdina.

A carta dizia:

“Minha querida Sandra,
Se estás a ler isto, é porque uma parte de mim ainda te habita.

Fugi, sim. Porque fiquei demasiado tempo. Porque me esqueci de mim durante décadas. Porque fui ensinada a resistir, quando o que devia era ter aprendido a sair.

O teu avô não é um homem mau. Apenas se perdeu. E eu deixei de me procurar.

Acordei um dia sem saber quem era. E isso, minha neta, é o pior dos sustos.

Fugi porque te amo. Porque queria que soubesses que nunca é tarde para recomeçar.
Porque quero que aprendas que amar-se a si mesma é a primeira forma de ensinar os outros a amar-nos também.

Perdoa-me o susto. Perdoa-me o vazio. Mas lembra-te disto:

Fugir, às vezes, é regressar a casa.”

Um beijo entrançado de coragem,

Avó Gertrudes

A mala ficou no quarto alugado durante dois anos.

Quando a senhora que a acolheu morreu, Gertrudes já tinha outra vida. Morava noutro sítio. Cultivava aromáticas num terraço minúsculo. Escrevia cartas que não enviava. E entrançava o cabelo sempre que precisava de prender a tristeza.

Nunca mais usou batom.

Mas quando passava por uma montra e via o reflexo da sua nova vida, sorria.

Ainda doía. Mas já não doía como antes.

Faustino nunca a procurou. Ou procurou mal.

O teatro perdeu brilho. Genoveva foi embora semanas depois. Disse que não sabia amar um homem que perdera a mulher e não percebeu como.

Sandra cresceu com saudades, com muitas saudades da avó. Até aquele dia em que encontrou um envelope entre os livros da mãe.

E leu a carta.

E, nesse dia, tudo entendeu.

 


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