30 - O CICLO E O GESTO

 


Na segunda semana de julho, quando o calor começava a desenhar ondulações no asfalto, Sandra decidiu viajar até à casa onde crescera.

A antiga casa dos avós permanecia vazia. Mantinha o cheiro a madeira antiga e folhas secas, mas já não emanava os aromas da comida preferida da infância. As paredes e janelas pareciam mais pequenas, mais nuas, uma versão desbotada de um sonho. Ainda assim, havia ali uma serenidade que só se encontra nos lugares que nos viram crescer.

A ideia de vender a casa parecia lógica. Os custos de manutenção tornavam-se cada vez mais difíceis de justificar. Ainda assim, algo a impedia de tomar uma decisão imediata.

Sandra passou três dias a limpar. Lavou o chão, sacudiu os tapetes, desceu ao quintal onde a terra se acumulava em silêncio. Redescobriu recortes de jornais antigos e fotografias a preto e branco que pareciam pedir outras narrativas.

Ao terceiro dia, caminhou até ao café onde o avô costumava jogar dominó. O balcão de mármore ainda lá estava, mas o resto da decoração era moderna. Uma grande arca vertical de bebidas brilhava na parede do fundo. Sentou-se na mesa do canto e pediu uma bica.

— É a menina Sandra, não é? — perguntou o dono do café, com um sorriso hesitante.

Ela assentiu. O homem contou-lhe que ainda havia quem se lembrasse bem da família dela.

— O meu pai gostava muito do seu avô Faustino. Era mais ou menos onde a menina está agora que passavam as tardes a jogar. O meu pai dizia que aprendeu tudo o que sabia de dominó com ele — contou, com um brilho nostálgico nos olhos.

Sandra encostou os lábios à chávena e sorriu. Pensou em responder, mas percebeu que o sorriso já bastava.

Durante várias semanas, passou os fins de semana na Figueira. Alternava entre a cidade e as raízes. Em Lisboa, os dias retomavam um ritmo exigente. A empresa voltava a funcionar em pleno, com reuniões presenciais. Sandra era uma das responsáveis por um novo projeto urbanístico em Almada.

No início, resistiu à ideia de vender a casa. Preferia que ela continuasse ali, como guardiã de memórias. As histórias que ecoavam entre aquelas paredes iam muito além da sua. A casa era um livro de pedra, cimento e madeira, onde chegavam leitores silenciosos que liam trechos invisíveis à noite. Sentia-se grata por a casa ainda se deixar escutar. Os ecos vinham de todos os cantos, paredes, tetos e janelas. Talvez todos os que ali viveram desejassem, por fim, partilhar as suas histórias.

Foi numa dessas manhãs abafadas de setembro que o reencontro aconteceu.

Sandra estava sentada no sofá do salão, mergulhada na leitura de um pequeno livro de contos, quando uma voz interrompeu os seus pensamentos:

— Sabes que te encontrei no meio de um parágrafo?

Levantou os olhos. Era ele. Jaime. Mais magro, o rosto vincado, mas com o mesmo olhar que atravessava camadas. Trazia o livro na mão. Uma anotação a lápis: “Página 47”.

Sandra não disse nada. Ele sentou-se ao seu lado.

— O homem da página 47... é o meu pai. A cena da tua mãe, sozinha, no consultório de obstetrícia — lembras-te? Era ela, mas também era ele. O médico. Antonino Cerqueira. O meu pai. Tu não sabias?

Sandra inspirou devagar. Recomposta da surpresa, respondeu:

— Não, não sabia. Mas talvez todas nós, em algum momento, tenhamos sido a mulher da página 47. Muitas mulheres foram Albertina sem saber.

Ficaram em silêncio. Do lado de fora, a cidade mantinha-se em segundo plano. Um miúdo corria atrás de pombos. Do outro lado da rua, uma senhora regava begónias. O mundo continuava.

— Já leste o livro inteiro? — perguntou ela.

Jaime assentiu.

— Duas vezes. Sublinhei passagens, chorei num autocarro. Raramente me senti tão lido, mesmo sem estar escrito ali. Tu és uma escavadora de silêncios, Sandra.

Ela sorriu. E naquele sorriso havia paz. Jaime não esperava nada. Nem ela precisava de oferecer. Eram dois que se reconheceram por dentro, e isso bastava.

— Vais continuar a escrever? — perguntou ele.

— Sim. Mas devagar. As raízes precisam de tempo para voltar a respirar.

Ele levantou-se. Tocou-lhe no ombro com a delicadeza de quem fecha um livro querido. Depois desapareceu como chegara.

Sandra ficou sentada, com o livro nas mãos. Os sons voltaram e com eles, uma certeza. Quando as palavras tocam verdadeiramente alguém, devolvem também o corpo a quem as escreveu.

 

Comentários