01 - A VERDADE E O RIO


— Diz-me a verdade. Se não fores capaz de mais nada, ao menos sê capaz de dizer a verdade.

Do alto do arranha-céu, a cidade parece perfeita. Um rio dourado recorta os edifícios, reflexos metálicos pintam as janelas de prata, o céu suspende-se limpo e luminoso. Um quadro. Mas eles não o conseguem ver. Não de verdade. O vento levanta os papéis da pasta dela, espalha-os pelo rooftop como folhas de outono. Ele vira costas sem dizer nada. Desaparece escadas abaixo. Ela hesita. Segui-lo? Apanhar os documentos? Alguns voam. Outros dançam pelo chão. Ajoelha-se. Começa a recolhê-los, sem pressa, na tentativa de voltar a sentir o corpo.

Dentro do carro, ele olha para o vidro como se fosse para além dele. Vê prédios em chamas, caixas de fruta empilhadas à porta da mercearia do bairro onde cresceu. Abre a porta de casa. O filho quer falar do último nível do jogo de guerra. Ele não responde. Diz que está cansado. Que há coisas bem mais importantes. O filho desobedece ao que o pai manda fazer. Ele nem ouviu. É jovem. Limpeza não é prioridade. O rapaz acena-lhe um adeus com a mão direita antes de usá-la para mostrar-lhe o dedo do meio.

A porta bate. O elevador demora.

Ela apresenta os documentos. Estão sujos, sim, e amachucados, mas estão todos ali. Assinados. Datados. Os casos resolvidos. Pede desculpa. Se soubesse, diz, não teria avançado com nada. Não precisava dele. Nunca precisou. Talvez só da ilusão. Quando era mais nova, precisou de alguém que a tirasse dali. Não percebeu o que custava fugir.

A mãe criticava tudo. Todos os dias. Não precisava de razões. O pai só falava em gritos. E ela fugiu. Para longe. Porque ficar era continuar a morrer aos poucos. E morrer ali não era opção. Aceitou o que havia. Não por amor. Por exaustão. Tinha pressa de sair. Mas levou com ela tudo o que queria deixar para trás.

Ele repetiu: — Diz-me a verdade. Se não fores capaz de mais nada, sê capaz de dizer a verdade.

Talvez um dia o tenha amado. Já não sabe. Imaginou outra vida, uma história onde fosse feliz. Mas os erros foram muitos. E foram esses que a trouxeram até aqui, onde hoje o céu troveja e a chuva parece querer arrancar as telhas.

Num fim de tarde como outra qualquer, ela saiu. Não gritou. Não chorou. Apenas fechou a porta. Ele não a merecia mais. A casa já não era casa. Era ruína. Hábito. Os olhos aprenderam a fugir. A fechar-se. E agora, isso, não importa. Não quando o mundo inteiro parece em colapso.

Sandra lembra-se de ter chorado, pequena, encostada a um canto. O pai apanhou-a assim. Não perguntou porquê. Levantou-a com força e disse que, se não se calasse, dar-lhe-ia um verdadeiro motivo para chorar. A mãe tentou intervir. Ele afastou-a. Dois gritos e a porta do quarto a bater. Foi tudo. E foi o início de tudo.

Ela cresceu ali. Dentro desse ruído. Dentro desse medo. Que hipótese tinha de ser feliz?

— Alguma vez estiveste apaixonada por mim? — perguntou Carlos — Vá lá. Diz-me a verdade. Casaste comigo só para sair da casa dos teus pais, não foi?

Ele fazia promessas. Depois calava-se. Ela ficou a falar sozinha durante anos. Reaprender a estar sozinha, depois disso, custou. Nem o filho servia de âncora. Nem a ioga ajudava. Mas ria-se dos contorcionismos. Ouvia as respirações. E aquilo, por estranho que fosse, dava-lhe alguma paz.

O coração dispara. Tem de chamar um Uber. Não consegue pegar no carro. Não depois das últimas palavras dele. Não com as pernas a falhar-lhe assim.

— Porque é que não podemos simplesmente ignorar o destino?

Amanhã é seis de janeiro. E ela quer recomeçar. Caminhar à beira-mar com alguém. Trocar olhares. Falar de nada. Quer acreditar que é possível, que o amor não é só uma armadilha. Mas já não acredita. Nem no amor, nem nos filmes. O verdadeiro amor é uma mentira típica de filmes. Devia ser obrigatório fazer passar avisos no início, no meio e no fim.

A casa está fria. Roupas por todo o lado. Cadeiras que seguram casacos, chão coberto de sapatos. O verão faz falta. Quer voltar ao rio. Mergulhar. Desaparecer.

No rio, fecha os olhos. Escuta a ausência e espera que o corpo peça ar. Depois sobe, como sempre.

Na véspera, sonhou com uma ponte suspensa. A mesma que visita quando o corpo dorme, mas a mente insiste em continuar.

— Quem és tu? — perguntou, no sonho.

— Sou só um sonho. Uma miragem do que acabaste de sonhar.

— O que me está a acontecer?

Sandra acorda. Vê um homem morto junto a um pinheiro. Tem os olhos abertos. Está ali há horas. Talvez dias. Não é o Carlos. Mas parece.

O alarme toca. Seis e meia. Não dormiu.

Pressente tragédia. Daquelas que rasgam. Pior do que a Pandemia. Instintivo. Físico. Como febre. Liga à Miriam.

— Desculpa, precisava de falar contigo. Tive o sonho outra vez. Ele estava na cama. Falou comigo. Depois apareceu morto sentado ao pé de uma árvore… e depois o despertador tocou.

— Podes ligar-me sempre, Sandra.

— A ponte pode colapsar. Vi os relatórios. Os cálculos estão errados. Como em Entre-os-Rios. Ninguém quer ver. Mas está tudo lá.

— Pensava que querias falar dos teus sonhos…

— É o mesmo. Ele disse-me: “Temos de troçar da morte para que ela nos tema. Tu não tens medo da morte. Tens medo da vida.”

— E beijou-te?

— Sim. Perguntou se podia ficar. Eu disse que sim. Não me lembro de mais nada.

— Gosto quando me contas essas coisas estranhas.

— Já não sei o que é verdade, Miriam. Estou cansada e fiquei mais mentirosa. E acredito. Já não sei o que inventei, o que vivi. O Carlos traía-me. Mas eu fui a primeira. E não me importei. Nem um pouco.

— Não digas isso.

— Apanhei-o num hotel. Quase como se ele quisesse ser apanhado. Deixou tudo à vista. E eu vi. Já nem nos falávamos. Já não éramos. Só fingíamos.

Queria acabar tudo. Rápido. Sentia que não aguentava mais. Pensava que talvez o fundo do rio não fosse um sítio assim tão mau.

— Tens os teus sonhos, Sandra. Agarra-te a eles. Com força.

— Podias vir cá a casa. Podias apertar-me o pescoço com essas mãos mornas como a água do meu rio.

 

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