02 - FALA-ME UM POUCO MAIS ACERCA DE TI

A mãe gostava de a vestir com um bonito vestido azul de seda. Domingos eram os dias escolhidos para exibir o seu orgulho, passeando Sandra pelo bairro como se ela fosse uma extensão bem vestida de si própria. Enquanto os outros miúdos corriam livres pelos passeios, mergulhados em jogos de rua, ela caminhava ao lado da mãe, devagar, contida, como se usasse uma trela invisível.

Eles jogavam ao peão, escondiam-se, chutavam bolas, e alguns, mais atrevidos, desciam a rua em carrinhos de rolamentos e cheiravam a liberdade das calçadas. Ela observava tudo com a ânsia de quem queria fazer parte, mas sentia apenas o peso da diferença. Perguntava porquê. Porque é que eles podiam e ela não. As respostas não vinham ou chegavam frias, secas, talvez até indiferentes. As atividades masculinas tinham cheiro a alforria e as raparigas ficavam do lado de fora daquele perfume.

Numa dessas épocas, Sandra recebeu uma boneca de Natal. Era maravilhosa. Longos cabelos dourados, olhos que fechavam quando deitada, pele de porcelana. Usava um vestido preto com folhos e era tão grande que mal cabia na cama. Tornou-se a irmã que nunca teve. Falava com ela. Contava-lhe tudo. As tranças que lhe fazia não eram apenas um passatempo, eram tentativas de lhe dar vida. De noite, acordava só para verificar se ela ainda ali estava, imóvel mas vigilante. De manhã, parecia estar sentada, como se não tivesse dormido, como se lhe tivesse guardado os sonhos.

Até que a mãe achou que já era altura de dizer adeus à boneca. Disse que a tinha oferecido a uma prima mais nova. Sandra caiu doente. A febre subiu tanto que se temeu que morresse. Lembra-se dos rostos esbatidos dos pais a dizerem um "coitadinha da miúda" como se isso bastasse. Ficou semanas paralisada, o corpo recusava continuar sem aquela presença silenciosa a seu lado. Quando a febre baixou, quando finalmente voltou a mexer-se, foi a avó quem reparou. Foi ela quem a vestiu nesse primeiro dia em que voltou à rua, quem a penteou com tranças tão cuidadas que pareciam feitas por mãos mais jovens. Foi um passeio bonito. E ainda hoje, com o tempo a empilhar-se sobre os anos, lembra-se daquelas mãos enrugadas da avó Gertrudes a entrelaçar-lhe o cabelo com a mesma delicadeza com que se embala uma memória.

As festas de família eram labirintos sufocantes. Sandra sentia-se encurralada entre rostos e vozes que, de alguma forma, sabia que iam desaparecer. Entrava na sala, olhava em volta. Havia dois palhaços em vidro de Murano numa estante, sempre a sorrir. Sorriam demais. Um dia segurou-os, ergueu os braços e deixou-os cair. O som do vidro a estilhaçar-se foi quase libertador.

A avó tirou-a dali num instante. Não falou muito, apenas sugeriu:

— Acho que seria uma ótima ideia vires passar uns dias a minha casa.

Mal as palavras lhe saíram da boca, já a menina tinha a mochila cor-de-rosa às costas. Os palhaços não sobreviveram, e os seus pais não perceberam. Nunca perceberam. A avó entendeu logo. Sandra sorriu-lhe e disse:

— Se não sairmos depressa, volto a ficar doente.

Na casa da avó, tudo era diferente. Ali cheirava a molho de tomate, esparguete e salsichas alemãs. Era o jantar favorito da sua infância.

— Vou já preparar a comida, minha querida! — disse a avó. — Exatamente como tu gostas.

A casa era grande. Havia retratos antigos nas paredes, gente que a menina não conhecia mas que, mesmo assim, lhe faziam companhia. O maior retrato era do avô Faustino, figura solene do teatro amador da Figueira da Foz.

O avô era diferente. Alto, pernas longas, falava como se declamasse a vida. Gostava dele. Contava-lhe histórias do teatro e piadas estranhas enquanto caminhavam juntos pela praia e, às vezes, cantava-lhe as músicas das peças. Ela sentia cócegas no cabelo quando ele cantava, e isso bastava-lhe.

A avó não gostava nada desse seu lado artista. Os grandes olhos azuis de Gertrudes compreendiam tudo. Havia uma atriz, Genoveva, que queria fugir com ele para Paris. Um dia, Gertrudes foi ao teatro, sentou-se bem à frente, braços cruzados, olhar gélido. Usou um vestido azul-noite com bordados dourados. No palco, o avô tropeçava nas falas. Genoveva, pálida, esqueceu as deixas. A avó, imponente, esmagou a rival com a simples presença.

Mal a peça acabou, Genoveva disse a Faustino que estava perturbada, precisava de sair dali. Despediu-se quase sem palavras e de voz embargada. Os olhos apertaram-se numa expressão de raiva e frustração. Naquela noite Faustino ganhou uma maneira diferente de lidar com a mulher. Não se atreveu a dizer-lhe nada de ruim, mas também não soube encontrar palavras para lhe explicar o que lhe ia na alma.

Faustino estava preso àquela paixão proibida. Genoveva queria Paris. Ele sonhou com isso e teve medo. Depois, vieram os pesadelos. Sentia-se enterrado vivo, acordava a gritar, suava. O corpo recusava-se a esquecer a culpa. O que Genoveva lhe oferecia era um mundo bem diferente do seu. Aqueles suspiros de prazer não costumava ouvi-los da mulher, vinham de um outro lugar, de um bosque distinto do dela. Ele habituou-se. Genoveva sabia o fazia, era mestra naquele ritual. Sorriam, fingiam pertencer a outros lugares, alheios à realidade, personagens de uma outra peça, de outro enredo por inventar.

Depois disso, o silêncio. Um silêncio que cobriu a casa durante meses. Nem regras, nem refeições em conjunto. Só o faz-de-conta de uma família a fingir normalidade. Até que a avó resolveu partir. Fez uma mala e desapareceu. Foi a sua pequena revolução.

Ela queria respirar, queria recuperar-se. Embora nunca tivesse pisado um palco, tinha alma de atriz. Era, em muitas coisas, parecida com Genoveva. Talvez por isso a odiasse tanto. Sabia que o avô a amava, mas sabia também que o que ele procurava na outra era uma certa forma de liberdade, algo que ela própria nunca lhe tinha oferecido.

 

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