03 - O DIA SEGUINTE A ONTEM
Os adultos têm uma estranha
inclinação para repetir o óbvio. É uma forma de se convencerem de que estão no
controlo, talvez para não escutarem o que realmente importa. Sandra já nem se
incomoda em escutar. Está saturada. A televisão satura-a. O país inteiro parece
embriagado com os números da Pandemia, com os gráficos a vermelho, com os
debates que não levam a nada. Desde o início do ano que tudo vai de mal a pior
e todos, sem exceção, anseiam que este capítulo termine de vez para poderem
voltar às suas vidas. Os políticos entretêm-se com estudos, projeções, curvas.
O novo confinamento, inevitável, parece ainda matéria de reflexão.
Sandra desvia o olhar da televisão e
repara nos pés. Hoje era o dia marcado para tratar de si, pintar as unhas,
hidratar a pele, cumprir um desses rituais mínimos que sustentam o ânimo. O
estômago ronca, talvez porque no ar ainda paira o cheiro doce das panquecas de
ontem ao jantar. Ela chegou a casa exausta, depois de uma sessão de ioga que
mais lhe pareceu um exercício de tortura. Fazer posições de contorcionista com
uma máscara na cara é qualquer coisa de absurdo, como um detalhe ridículo
tirado de um mau filme de ficção científica. Depois disso, tomou um duche
rápido, preparou as panquecas, e sentou-se com elas ao colo em frente à
televisão.
Fez zapping. Muito. Demasiado. Tudo o que via repetia-se nos
noticiários repletos de Covid e passavam filmes esquecíveis com vampiros em
perseguição, séries policiais, futebol em abundância, mais reportagens, mais
dados, mais mundo contaminado. Uma canseira sem fim. Precisava sair dali, ainda
que apenas em pensamento. Levantou-se e procurou um livro leve, uma história
romântica, feliz, daquelas que não pedem esforço, apenas um pouco de atenção e
entrega. Queria só arejar a alma.
A estante é um retrato da própria
Sandra, cheia até ao limite. Romances, aventuras, clássicos, revistas,
policiais, manuais técnicos de engenharia. E as bandas desenhadas. Firmina,
gata negra de olhos atentos e passos de seda, costuma aninhar-se entre os
volumes mais coloridos. Move-se pela casa como sombra viva, atravessando
estantes repletas de bibelôs e recordações com a elegância de quem nasceu para
não perturbar. Ontem, no entanto, andava irrequieta. Sentiu a ausência da dona,
a falta do toque, das palavras. Sandra chegou tão cansada que nem sequer lhe
afagou o pêlo.
Agora, sentada na cama, despida de
cobertores, espera que o cérebro arranque. Há dias assim. Um corpo já desperto
e um espírito preso a meio caminho. Tudo indica que voltará ao teletrabalho,
como em março do ano passado. E só a ideia de regressar a essa clausura, a
esses dias intermináveis em frente a um computador, dá-lhe vontade de gritar. E
grita.
– MERDA! MAS QUE GRANDE, GRANDE MERDA!
A voz explode pela casa, assusta
Firmina, que dispara pelo corredor fora e se enfia no topo da estante, entre os
livros da Mafalda, como se subisse ao Kilimanjaro. Lá em cima, junto ao teto,
encontra o seu refúgio. Observa o mundo de baixo com desconfiança, com os olhos
de quem pressente tempestade.
Sandra regressa lentamente à
realidade. O cérebro começa a devolver-lhe o controlo, embora ela não tenha
pressa em retomar o comando. Uma brisa de insegurança sopra dentro do seu
peito. Vê o rosto do homem com quem sonhou há dois dias. Pergunta-se se o corpo
dele ainda estará junto ao pinheiro, deitado como no sonho. Com a manga da
camisa de dormir, limpa os olhos pesados e olha para lá da janela, tentando
acalmar a inquietação que lhe bate à porta.
Ontem mal jantara. Não se lembra sequer
de se ter deitado na cama, talvez tenha adormecido no sofá, frente ao
noticiário, com o livro fechado no colo. Tem quase a certeza. Talvez o
sonambulismo tenha decidido por ela, arrastando o seu corpo do sofá até à cama.
Detesta reconhecer-se nesses gestos mecânicos. Lembra-se das palavras do pai,
sempre tão cortantes: “és uma criancinha mimada”. Doía. Chorava, escondida,
para não lhe dar o gosto de a ver magoada. E a tristeza, com o tempo, azedou.
Tornou-se raiva. Tornou-se um peso surdo, cravado na garganta.
A luz difusa de um dia de inverno
entra pela vidraça embaçada. Há frio lá fora, mas o céu está limpo. Sandra
ergue-se e decide oferecer um gesto de paz a Firmina. Na cozinha, prepara uma
taça com leite próprio para gatos. Coloca-a na sala, e fala para o alto da
estante, sem olhar diretamente:
– Sinto muito, Firmina. Sei
que fiz uma coisa muito idiota mas não me consegui controlar. Tentei muito,
mesmo muito, minha querida, mas não me consegui controlar. Anda, sai daí de
cima e vem beber a tua bebida especial.
Sente-se entorpecida, como se vivesse
dentro de uma película passada em câmara-lenta. Provavelmente efeito da falta
de sono. O despertador, pelo menos, cumpre a função arrancando-a das
profundezas dos sonhos e devolvendo-a, de forma rude, ao lado menos simpático
da realidade.
A gata hesita. Continua pendurada,
cabeça mais baixa que o corpo, olhos fixos na taça distante. Simula que vai
sair da prateleira, faz um gesto em falso com a pata, mas prefere aguardar. Se
pudesse, telefonava a um entregador de leite e ficava ali para sempre. Sandra
desaparece para dentro da cozinha. É agora que salta, silenciosa e felina, até
à borda da taça. Com movimentos pequenos, desenha ondas delicadas no leite com
a língua.
Sandra observa. E volta a pensar no
homem do sonho. Porque surge ele, de quando em vez, a deitar-se a seu lado e a
beijá-la? Haverá alguma mensagem escondida naquela presença onírica?
Aquela pergunta ficou a ecoar dentro
dela. Ele sorriu, piscou os olhos, e depois beijou-a. Gostou desse beijo. Sabia
que não mudaria esse detalhe. Não em sonho. Porque os sonhos, às vezes, ajudam
a escapar das coisas reais, aquelas que pesam no espírito e não têm solução.
Ontem, Sandra estava demasiado
cansada para pensar.
Ontem, Sandra estacionou o carro sem
se lembrar do trajeto.
Ontem, abriu a porta do prédio,
chamou o elevador, entrou em casa com gestos automáticos.
Ontem, foi vencida pelo cansaço antes
de ter tempo para se escutar.
E agora… agora já é hoje.
O dia seguinte a ontem, pela
manhã.
E começa, como tantos outros, com a
esperança de que algo mude. Nem que seja só dentro dela.
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