04 - DEVES SUSTER BEM A RESPIRAÇÃO
A cada dia que passa aumenta o número
de mortes e de infetados pelo vírus. Já não é só nos noticiários. É nos rostos,
nos gestos, na forma como as pessoas se calam. O medo entranhou-se em tudo.
Sandra acredita que as vacinas irão trazer a tranquilidade de que todos estão à
espera, mas o processo de vacinação decorre a um ritmo absurdamente lento. As
razões para isso ninguém as conhece bem, ou se conhecem, não as dizem. As
vacinas têm chegado em número reduzido, como se fossem um bem secreto, escasso,
quase clandestino. E para piorar ainda mais o cenário, transparece dos
discursos oficiais um grande desnorte e uma tremenda falta de lucidez. As
palavras dos responsáveis do governo mais confundem do que esclarecem. Tudo soa
a improviso.
Sandra suspeita, com crescente
inquietação, que se as coisas não acalmarem, os hospitais e todo o Sistema
Nacional de Saúde irão entrar em colapso. O confinamento decretado, que
supostamente seria firme, revela-se, na prática, uma sombra do que deveria ser.
Ninguém o leva realmente a sério. E do que foi comunicado ao país pelo Primeiro
Ministro, foram mais as exceções ao que não se pode fazer do que propriamente
as restrições. As escolas continuam abertas. As creches, as universidades, as
igrejas também. Os tribunais e os serviços públicos com marcação mantêm-se a
funcionar. Afinal, este confinamento não se assemelha em nada ao de março do
ano passado. É uma encenação. Não parece ter sido pensado com a seriedade que a
situação exige.
Sandra concluiu o seu passeio
higiénico da manhã. Desde o dia 14 de janeiro que está em teletrabalho. Os
e-mails não param de chegar, tem meia dúzia de projetos em mãos e outros tantos
a aguardarem decisões camarárias. Diminuiu a papelada, é verdade, assim como as
deslocações aos locais das obras. Mas o número de horas passadas ao computador
quase triplicou. Paradoxalmente, trabalha agora mais do que antes. Não há como
discordar do chefe. Ela fazia muitas horas quando trabalhava em condições
“normais”, mas em casa consegue gerir melhor o ritmo das tarefas e os prazos
dos trabalhos a entregar.
Toca o telemóvel. Sandra atende.
— Olá, Sandra! Estás a trabalhar? Se
te estiver a incomodar posso ligar mais tarde.
— Não, não tem problema. Estava mesmo
a precisar de uma pausa. Ainda bem que ligaste, Miriam.
— Liguei-te para te perguntar uma
coisa. Estou para aqui fartinha de moer a cabeça. Como tu bem sabes, o meu
aniversário é já para a semana, e é da praxe eu convidar o nosso grupinho
especial aqui para casa para festejarmos “à séria”. É que nem somos assim
tantos, pelas minhas contas seremos o quê... dez, doze pessoas, talvez catorze
se a Irene e o Carlos se dignarem a aparecer. Mas depois olho para as notícias
e fico sem saber o que fazer.
— Pois! É uma valente chatice. Eu já
me tinha lembrado disso. Estamos outra vez presas em casa e agarradas aos
computadores. É tudo uma grande seca, escuta bem o que eu te digo, olha que eu
acho que as coisas ainda vão piorar.
— Achas?! Achas mesmo? Queres dizer
que vou ter de festejar o aniversário sozinha?
— Pois, mas desta vez vou ser
egoísta, Miriam. Digo-te já. Se convidares o Carlos, eu não vou.
Os planos de Miriam continuavam a
esbarrar na Pandemia e agora também no ultimato de Sandra. Acostumada demais à
sua presença, não conseguia pensar em festejar o aniversário sem a sua
companhia.
— Estes últimos dias só me têm dado
para chorar, sabes. Umas vezes de raiva, outras de angústia. Estou mesmo a
começar a flipar com esta merda toda! Só dão notícias de gente a morrer. Às
vezes sinto que seria muito melhor viver num apartamento assombrado do que ter
de aturar tantos estados de emergência. Eu juro-te que preferia mil vezes ter
fantasmas cá em casa, era mil vezes mais cómodo do que ter de passar por tudo
isto. E como se não bastasse, está um frio do caneco, chiça! Já nem me lembrava
de como era sentir um frio assim. Tenho saudades tuas, amiga. Estou a ficar rabugenta,
apetece-me matar alguém...
— Havia um lugar em que fazia sempre
frio. A cantina da Faculdade de Engenharia, lembras-te, Miriam? Era um autêntico
congelador. Pegávamos no tabuleiro e corríamos para aquela mesa que ficava
junto a um aquecedor, mas aquilo não aquecia quase nada. E quanto a ter
fantasmas em casa, acho que é mais problema meu do que teu.
— Não me digas que voltaste novamente
a sonhar com aquele homem que te beijou na cama? Foi? O homem do teu sonho
voltou para te assombrar?
— Não, ...não esta noite, mas podes
ter a certeza que às vezes sinto a sua presença. Ele mexe-me nas coisas, ontem
mesmo não encontrei as chaves no sítio habitual. Só pode ter sido ele.
Entretém-se a esconder-me coisas. Tu não sabes, mas a minha avó Gertrudes
acreditava em fantasmas e sempre me disse que é preciso saber falar com eles,
caso contrário, abusam de nós.
Miriam responde com um sorriso na
voz.
— Pois, pois! Abusam de nós... mas é
contigo que eles se metem na cama, essa é que é essa.
— Cala-te, Miriam, não brinques com
coisas sérias! Olha que nunca mais me esqueci de uma história que se passou com
a minha avó. A casa dela ficava perto do cemitério de Buarcos, na Figueira da
Foz, e ela tinha como hábito prender a respiração quando passava por lá. Dizia
que se não o fizesse, os espíritos mais recentes tentavam entrar-lhe no corpo
pela boca, e depois possuí-la. Um dia, ela avançou distraída pela rua e passou
em frente ao portão principal sem suster a respiração. Sentiu logo uma espécie
de bafo amargo na garganta que lhe fez perder a respiração. Ficou aflitíssima,
depois percebeu onde se encontrava e o que é que lhe estava a acontecer. Tentou
inspirar ar de todas as maneiras que conseguia, sem resultado, e desatou a
correr muito depressa para longe dali. Foi só depois de ter passado a rua do
cemitério... muitos, muitos metros depois, que conseguiu voltar a respirar.
Chegou a casa muda, e passou quase um ano com a sensação de que algo ou alguém
respirava perto dela, assim bem perto do seu pescoço.
— Credo, mulher! A sério?! Agora já
sei a quem se deve essa tua faceta mais gótica. Calculo que faças como a tua
avó sempre que passas perto de um cemitério.
— Olha que as aulas de ioga ajudam
imenso. Já aprendi a maneira correta de conter a respiração, mas ainda tenho de
melhorar bastante essa técnica. Não quero ter de aprender da pior maneira, como
a minha avó. Ou então, talvez o espírito daquele homem me tenha possuído de uma
qualquer vez em que eu passei perto de um cemitério sem me aperceber!
As duas começaram a rir. A conversa
volta a encostar-se à realidade
— Acho que deves festejar o teu
aniversário, claro que sim. Mas tens de convidar “apenas” as pessoas do teu coração,
entendes? O teu problema é saber escolher.
Agora o sorriso de Miriam foi mais um
esgar.
— BOA!! Obrigadinha, Sandra! O b r i
g a d i n h a... tu, às vezes, sabes mesmo como destroçar um coração.
— Schiuuu! Cala-te, não sejas parva!
Sabes bem que eu te continuo a amar como sempre. Mas estou um bocadinho zangada
contigo. Ainda não me esqueci. Recusaste vir cá a casa apertares-me o pescoço
com essas tuas mãos macias, Miriam, essas mãos mornas como a água do meu rio.
Lá fora o ar continua fresco, as árvores
vão balançando os galhos despidos. Sandra fecha o computador e observa o céu
sem nuvens pela vidraça da janela à sua frente. Sente-se prisioneira do
trabalho. Refém da Pandemia, pensa em Miriam e no absurdo que é ter de abdicar
do aniversário que planeara com todo o carinho.
Deita-se de costas no sofá da sala,
observa o teto e começa a travar a respiração. Franze as sobrancelhas antes de
fechar os olhos por um instante. Empurra Firmina para fora dali, não quer que a
gata a incomode. Necessita da máxima concentração para controlar a respiração.
O rosto, as orelhas e o pescoço ficam vermelhos.
Resolveu atravessar o rio inteiro
debaixo de água, e é a meio do caminho que ela se encontra. O rio é grande e
largo, e atravessar aquela distância em apneia é arriscado. Cruza as pernas
vagarosamente, as sereias ficariam orgulhosas de a ter como rainha. Sabe a
distância que falta percorrer, ainda não pode respirar. Prometeu à avó lutar
contra essa vontade, não pode abrir a boca porque em todo o lado as paredes escondem
cemitérios. Pilhas de cadáveres de mortos recentes amontoam-se nesta tragédia.
São os efeitos da Pandemia.
- Cuidado, Sandra. Protege-te. Não respires. Sustém sempre a respiração. E sempre que saíres à rua, não te esqueças de colocar uma máscara.
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