05 - CORAÇÃO EM SILÊNCIO


Nuvens cinzentas decoram a paisagem, acentuando o quão difícil tem sido viver estes dias. No jornal da tarde anunciam que Portugal lidera a lista negra dos países com maior número diário de infetados. Medidas mais drásticas de confinamento serão inevitáveis. Fala-se do encerramento iminente das escolas e universidades. Sandra não está surpreendida. Erraram ao não terem decidido mais cedo. Perdeu-se tempo precioso.

Desde o início do ano, os números da Pandemia disparam em flecha. Os infetados com Covid são agora astronómicos, em comparação com os que motivaram o primeiro confinamento. No seu gabinete, três colegas testaram positivo. Toda a equipa de assistentes foi obrigada à quarentena. Quem trabalha no terreno está sempre mais exposto, e basta um deslize para tudo se precipitar.

A Pandemia não dá tréguas. Avança, impiedosa, alheia ao esforço humano, ao medo, à esperança.

Sandra acordou sem vontade. O projeto que tem em mãos arrasta-se. Faz tudo de forma mecânica, automática, como se usasse uma venda nos olhos apenas para cumprir a obrigação. Nem tomou o pequeno-almoço. Atirou-se ao computador assim que saiu da cama. Agora, o estômago reclama.

Firmina, súbita e determinada, salta para o teclado e interrompe-lhe a rotina.

— Para de me dar cabo da paciência. Só mesmo ela te faz arrancar desse teu esconderijo sagrado, Lady Firmina.

A dona rende-se. Hiberna o portátil. A gata acompanha-a até à cozinha onde a merenda lhe é servida com honras de ritual. Sandra aproveita para comer o resto de uma lasanha vegetariana que sobrou do jantar anterior. Depois decide ir pedalar. Enquanto ainda pode. Enquanto ainda há liberdade para sair à rua.

Sente o apelo da fuga. Precisa de escapar de casa antes que mais uma permissão lhe seja arrancada. O confinamento vai apertar, isso é certo. Pedalar até ao limite das forças tornou-se o seu modo preferido de castigo e purificação. Quer sentir o corpo ceder, o rosto a queimar-se, o vento a castigá-la, como se a dor pudesse lavar a mágoa.

— Nada do que se passa parece real, Firmina. Somos figurantes de um embuste, contratadas para a série errada. As notícias só servem para nos aterrorizar. Temo até a respiração. Esta Pandemia é uma maldição. Uma retaliação da natureza, que decidimos maltratar sem piedade. O mundo cansou-se de nós.

Firmina mia, baixo, quase em lamento. Fecha os olhos e entrega-se a uma sessão de higiene meticulosa. O silêncio instala-se entre as duas. Sandra observa-a como quem espera uma resposta.

— Tu não entendes nada, gata tonta. Mas também, por que haverias de perceber? Vou dar uma volta, preciso de me livrar destes pensamentos que me encurralam. Pedalar vai ajudar.

Ela faz tudo igual como das outras vezes. O corpo tenta libertar a mente. A bicicleta desliza pelas ciclovias e ruas quase desertas. É urgente pedalar, continuar sempre a pedalar, como se fosse possível deixar tudo para trás. Vento na cara, músculos a latejar. Curvas apertadas, memórias a dissolverem-se no movimento.

Sandra aprecia a sensação de pedalar em linha reta de olhos fechados, guiada apenas pelas imagens que guarda da paisagem. O corpo afina-se com o traçado do caminho. Castiga-se. Os movimentos em cima do selim imitam as torções do ioga que agora tem de praticar sozinha. O centro vai encerrar. Já recebeu o aviso por email. Convenceu o Mestre a enviar-lhe uma rotina personalizada, algo íntimo, sagrado. Irá segui-la com rigor. Sozinha. À meia-luz da sala. Protegida pelo aroma do incenso de lavanda que manda vir do Brasil.

Os olhos ainda fechados, o corpo entregue à estrada. A adrenalina sobe. Alguma coisa ativa o instinto de alerta. As pálpebras abrem-se de súbito. A luz cega, mas os olhos ajustam-se depressa. Um brilho metálico surge à beira do passeio, traiçoeiro, demasiado perto. Reage em frações de segundo. O corpo alonga-se, os dedos finos travam o inevitável. Um sopro de vento empurra-lhe o equilíbrio. As rodas sibilam rente ao lancil numa tangente perfeita. Um erro de segundos e seria o desastre.

Este impulso de andar de olhos fechados vem do mesmo lugar obscuro onde aprendeu a mergulhar e a suster a respiração até ao limite. É um hábito antigo, instintivo. Um gesto entre o desafio e a expiação.

Mais tarde, enrosca-se debaixo da manta. Quer adormecer sem entrar em pânico. Dormir é importante. Não pensar em nada de relevante, por uma noite que seja. Enrola-se no silêncio, refugiada.

O quarto é banhado pela luz suave da lua. Como naquela noite em que aquele homem a beijou no sonho. Por um momento, julgou reconhecê-lo, e o coração, descompassado, encontrou um breve consolo.

O vento lá fora abana as árvores com fúria. Firmina decide atravessar o corredor. Sabe, como só os animais sabem, que a dona precisa de companhia. Salta para a cama com movimentos serenos. Duas voltas antes de se instalar confortavelmente aos pés de Sandra.

A gata mantém os olhos abertos. Atenta. Ouvindo. Sente o bater do coração por debaixo do edredão. E essa cadência firme, serena, viva, diz-lhe que Sandra, esta noite, não terá pesadelos.

 

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