33 - O CADERNO DA FITA AZUL
Foi numa sexta-feira igual a tantas outras que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, anunciou o fim da Pandemia Covid 19.
A doença chegou ao fim no dia 5 de Maio de 2023, pouco
mais de três anos depois do seu início, e tirou a vida a quase 7 milhões de
pessoas.
O discurso do diretor foi breve, e assim afirmou numa conferência de imprensa: — "É com grande esperança que declaro o fim da Covid 19 como uma emergência de saúde global. No entanto, isto não significa que a Covid 19 tenha deixado de ser uma ameaça para a saúde a nível global. Na semana passada, a covid-19 tirou uma vida a cada três minutos e estas são apenas as mortes de que temos conhecimento".
Nesse mesmo dia Sandra retirou da estante o caderno com o laço azul desfeito. Estava
intacto desde o dia em que o recebera, sem remetente, apenas com a caligrafia
conhecida da avó Gertrudes no envelope, muito firme e meticulosa. Aquele
presente era como uma promessa por cumprir. Tinha-o guardado na estante da sala
à espera de um tempo que agora, finalmente, lhe parecia ter chegado.
Na
cozinha, Miriam preparava o café. O cheiro espalhava-se leve pelo ar, com
vontade de pertencer àquela memória por construir.
—
Vou usar isto, Miriam. — afirmou Sandra, com o caderno na mão.
—
Sério? E o que vais escrever? — perguntou Miriam, com admiração.
Sandra
sentou-se à mesa, abriu o caderno e percorreu com os dedos a primeira página em
branco. Havia algo de muito íntimo e cerimonioso naquele gesto.
—
Quero escrever tudo, Miriam. Tudo o que senti nestes últimos anos. Escrever
sobre a minha mãe, voz apagada entre portas fechadas, sobre a sua morte, sobre o
divórcio e as casas, sobre a Pandemia, sobre o passado inteiro, sobre a avó Gertrudes,
guardiã de fantasmas e afeição, sobre o meu avô, sobre o meu pai e os silêncios
todos, e sobre nós Miriam. Sobretudo sobre nós. Já não tenho receio de olhar
para trás. Nem de olhar para dentro. Talvez este seja o modo mais verdadeiro de
me entender — disse com uma voz serena.
Miriam
aproximou-se e pousou a caneca à frente de Sandra, que sorriu. Sentia-se
diferente. Não aliviada, nem curada. Apenas disponível. Havia uma urgência
amorosa nesse ato de registar. Uma vontade de registar, de arquivar não apenas os
factos, mas os sentidos. Agora percebia tudo o que a voz da avó lhe dissera.
Pegou
numa caneta, alinhou o caderno, inspirou fundo.
A
mão não tremia. Essas primeiras palavras tinham de ser bem pensadas, pois
poderiam ser a abertura do primeiro capítulo de um livro que Sandra, sem saber,
vinha a escrever desde sempre. A voz da avó, essa advertência inicial, seria
agora ponto de partida e também de regresso.
Ao seu
lado, Miriam permaneceu em silêncio, como quem vela o começo de uma travessia.
E assim,
com a ousadia das primeiras e últimas linhas, ela escreveu:
"—
Diz-me a verdade. Se não fores capaz de mais nada, ao menos sê capaz de dizer a
verdade."
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