06 - O SUSSURRO DAS BONECAS
Gertrudes ensinou a neta a respeitar
fantasmas desde muito cedo e fê-lo com convicção. A história da assombração que
sofreu por não ter prendido a respiração ao passar junto a um cemitério
continua viva na memória de Sandra, como se a avó a contasse ainda ontem. A
menina puxava com força os cabelos da sua irmã boneca, onde inventava tranças e
estilos impossíveis. Alguns desses cabelos caíam, perdendo-se para sempre.
Usava elásticos coloridos e ganchos metálicos oferecidos pela avó, que tinha o
péssimo hábito de segurar entre os dentes antes de os prender.
Havia também os contos secretos sobre
meninas fantasma que amaldiçoavam crianças malcomportadas. Gertrudes era
insistente e ser bem-educada era um escudo contra tais castigos.
Debaixo da manta, duas mãos gélidas
materializam-se ao seu lado. Começam a revolver-lhe as ondas loiras como se
fosse a boneca que outrora entrançava. Os dedos, ainda sujos da terra húmida
que haviam acabado de esgravatar, encontram abrigo nos seus cabelos. Descobriram
esta nova morada, segura, quente, acolhedora.
Firmina recua, os olhos semicerrados,
e solta um miado trémulo.
— Ajuda-me… ajuda-me… — sussurra uma
voz de homem, quebradiça, quase de porcelana. Repete: — Ajuda-me… ajuda-me…
O tempo detém-se, suspenso nesse
murmúrio de assombro. O cabelo de Sandra ganha manchas de lama, a camisa de
noite e o edredão tingem-se em tons argilosos. As mãos enigmáticas passeiam-lhe
agora o pescoço, os ombros, descendo com espantosa delicadeza até à cintura. Um
leve estremecer percorre-lhe as costas. E ele aparece.
— Não te zangues comigo. Alguém anda
a arquitetar esta história para nos atormentar. Estou confuso. Preciso da tua
ajuda… Tenho de enterrar uma boneca.
A voz ecoa sem violência. O homem, nu,
pousa sobre o colchão e pressiona, com ternura metódica, as coxas de Sandra,
decorando-lhe as nádegas com círculos perfeitos de uma argila espessa.
— Sabes, o túmulo ainda está vazio. A
boneca avisou-me. Disse-me que tinha de vir pedir-te ajuda no meio da noite.
Nenhum de nós descansará enquanto isso não for feito.
Sandra mantém-se em quietude, rendida
ao calor húmido das mãos que lhe massajam o dorso com um lodo morno. Fecha os
olhos. No mundo real seria difícil viver algo assim. Uma das mãos, em forma de
concha, alcança-lhe o sexo. A carícia é firme e respeitosa, quase religiosa.
— Ainda não ousaste olhar para dentro
da sepultura que eu abri — murmura ele, agora assinalando-lhe a vulva com
fragmentos de terra negra. — Foi tudo o que sobrou de mim.
Mas Sandra hesita. Um tremor de
dúvida começa a dominá-la. A voz dele, ainda doce, já não a tranquiliza como
antes.
— Não contes isto a ninguém. A boneca
morreu… Nem ela nem eu sabemos quem nos matou. Talvez tu. Ou talvez sejamos
apenas mais dois corpos perdidos nesta Pandemia sem fim.
Sandra quer ver-lhe o rosto.
Esforça-se, vira-se, mas nada. Apenas sombra, ausência. As mãos continuam o seu
trabalho, cobrindo-lhe os seios de musgo, de terra. Um terror subtil começa a
infiltrar-se. E ele volta a falar:
— Acreditas ou não? Temos de enterrar
a menina boneca junto ao pinheiro onde me encontraste.
Ela enxerga melhor na penumbra.
Espreita pelo canto do olho, mas ninguém. O quarto tornou-se abrigo de
presenças invisíveis. Sandra permanece assim, quieta, entregue às emoções que
crescem.
Então, as portas do armário começam a
ranger. O som é antigo, mas familiar. Lembra-lhe o dia em que a mãe lhe
arrancou a boneca das mãos, sem aviso, sem explicação. Sandra escondera-se
então no guarda-fatos, a chorar e a prometer vingança. Agora, o armário volta a
abrir-se e fechar-se com aquele som de cárcere antigo.
A porta do quarto bate com estrondo.
Sandra acorda sobressaltada.
Silêncio. Seria truque? Assombração? Firmina, de novo a gata a pregar-lhe um
susto dos seus? Da última vez, o quarto ficara um caos.
Lá fora, as sirenes não cessam. Luzes
bruxuleiam na avenida como se extraterrestres invisíveis estivessem a tomar a
cidade. Os mortos e feridos não param de aumentar. Quantos mais conseguirão os
hospitais salvar?
Ainda sente nas costas o peso das
mãos desaparecidas. Os cabelos colados à nuca transpirada incomodam-na. Chama
por Firmina. Nada. A gata fugiu, sem hesitar, para um lugar seguro.
Tenta adormecer. Morde os lábios e,
em silêncio, volta a enfiar-se debaixo do edredão. O odor a terra húmida ainda
persiste, e faz crescer nela uma sensação de desejo e serenidade. Um sorriso
discreto aflora-lhe os lábios. Está quase certa de que ele voltará. Se não
hoje, noutra noite qualquer.
Lá fora, a Pandemia não dá descanso à
cidade.
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