07 - PRENDE A DOR NAS TUAS TRANÇAS

 

O mundo passou a ser um sítio bem mais perigoso e aborrecido.
Aborrecido de uma forma opaca, perigoso de uma maneira lenta, quase silenciosa. Não se ouve o perigo, mas ele está por todo o lado, infiltrado no ar, nas superfícies lisas dos transportes, no toque negligente de uma maçaneta, no olhar demasiado insistente de quem já perdeu o medo. Todos os cantos do planeta partilham agora a mesma Pandemia global, transversal, sem precedentes. E mesmo assim, mesmo assim, continua a haver quem confunda liberdade com egoísmo.

Alguns ainda agem pelo bem comum, com gestos pequenos, quase invisíveis. Outros dizem que o vão fazer… e não fazem. Prometem bom senso, mas depois decidem como idiotas. E são perigosos. Pior do que o vírus é a ilusão de que se pode continuar como dantes.

Sandra observa tudo isto a partir da sua janela. A cidade respira por tubos finíssimos. O ar parece rarefeito nesta Lisboa, em janeiro, que tem agora um som próprio, semelhante ao sossego a aprender a chiar.

Não era esta a versão do mundo com que o ano devia ter começado. O país mergulhou de novo no confinamento. Mais severo, mais absoluto. Agora é a própria vida quem dita as regras, quem suspende os desejos, quem decide a sorte de cada um. A liberdade, essa velha amiga, foi colocada entre parênteses.

As pessoas evitam-se, desviam-se pelos passeios com coreografias mal ensaiadas. Fogem umas das outras com medo, como se o outro corpo já não fosse um igual, apenas uma ameaça. Máscaras, viseiras, olhos cansados. Suspiros abafados. Queixam-se da falta de abraços, de beijos, de festas, de viagens, de espontaneidade. Até o direito de sair de casa passou a ser raro e precioso. Os parques infantis estão cercados por faixas plásticas, como cenas de crime. Os bancos dos jardins, interditos. Ir trabalhar tornou-se um risco ponderado. Ir ao supermercado, uma missão tensa.

Viver assim por tanto tempo muda as pessoas.

Há quem diga que tudo isto ajudou a perceber o que realmente importa. Outros arriscam a vida só para fugir ao peso da solidão.

É sábado. Sandra acorda com o corpo em sobressalto, como se estivesse a ser empurrada por dentro. Não tem nome para aquilo que sente. Decide fazer ioga antes do pequeno-almoço, talvez consiga acalmar o sistema nervoso. Estende o tapete no chão da sala, prepara-se. Alongamentos leves. O corpo estala, os tendões reclamam, as articulações protestam baixinho. É nesses pequenos sons que ela sente a sua própria idade.

Enquanto torce e dobra o corpo em formas improváveis, Firmina observa, sentada num canto, com olhos semi-cerrados e um ar que mistura escárnio e ternura. Sandra imagina o que a gata pensa, talvez ache que para certos movimentos seria preciso ter nascido pantera.

Ela insiste. Puxa uma perna acima da cabeça, depois senta-se nos calcanhares com o dorso rodado, os braços esticados no chão, o pescoço arqueado para trás até formar um perfeito “U” humano. Fica assim, suspensa entre o equilíbrio e o colapso. Depois, encosta-se à parede, vira-se de cabeça para baixo, e permanece imóvel. O peso do corpo concentrado num pequeno ponto no topo do crânio. Medita. Respira devagar. Algumas lágrimas escapam-lhe, como se também elas tentassem desafiar a gravidade.

Sabe que vai adiar sonhos, compromissos, prazos, ideias. Justo agora, quando finalmente assumira a casa como sua, depois da remodelação. Justo agora, depois de decidir viver em Lisboa. A ironia da vida é cruel, pensa.

Firmina aproxima-se com prudência, acha que aquela pose não faz bem à humana. Tem receio que o sangue lhe escorra do nariz. Fica tão perto que os narizes quase se tocam. Sandra abre os olhos, assustada com o focinho da gata ali mesmo à frente. Respira fundo para não desabar sobre ela. Balança a cabeça, pressiona as nádegas contra a parede e, com um movimento calculado, desfaz a postura.

Firmina escapa, satisfeita.

— Gaita! Nem dei conta da gata. — suspira Sandra, já estendida no tapete.

Depois, cumpre o ritual do dia. Levanta-se, despede-se da roupa, toma banho, veste o roupão, seca o cabelo, serve Firmina, come. Lê mensagens, passa os olhos nas notícias, arruma o tapete, hidrata-se, veste-se, ajeita a cama, programa a máquina da roupa, lê mais um pouco. Lembra-se que a terça é o aniversário de Miriam e ainda não tem presente. Reclama mentalmente. O tempo não chega para nada.

A cabeça inunda-se:

→ Despejar o lixo

→ Ir às compras

→ Condomínio

→ Seguro do carro

→ Mamografia

→ Máquina da loiça

→ Solidão

→ Pandemia

→ loucura

→ Resistir

O mundo está a desacelerar, e ela a acelerar por dentro. Enlouquecendo em ritmo lento, como quase todos. Tentou adaptar-se e fez caminhadas, bicicleta, alimentação vegan, ioga. Deixou partes do passado para trás. Reinventou-se. Ainda se sente desenraizada nesta Lisboa nova, quase estrangeira.

Teve dois homens que preferia esquecer. Uma proposta em Liverpool que recusou por exaustão. O cansaço impedia-a de manter os olhos abertos. Lembra-se da manhã em que encostou as costas a um muro de tijolos, e o corpo lhe disse: Ou te afastas, ou te deixas esmagar.

Já nem sabia onde vivia.

Precisava de um lar. O pai morrera de um cancro feroz. A mãe nunca se recompôs, afogou-se nas memórias, recusando o presente. Repetia sempre:

— Eu vou vender tudo. Vais acabar sozinha e na miséria.

Sandra lembra-se dessa frase como se fosse tatuagem. Hoje sente-se de novo a menina escondida no guarda-vestidos, à espera que o pai a encontre. Rodopia a cabeça, abraça-se até deixar marcas. Só depois de gritar todos os palavrões que conhecia à mãe conseguiu escapar e desaparecer.

E apareceu aqui, proprietária desta casa no meio de uma Pandemia.

Pega no cabelo e começa a fazer tranças. A avó Gertrudes ensinou-lhe esse ritual antigo. Quando uma mulher sente tristeza, deve entrançar o cabelo, para que a dor fique presa ali, entre os fios, sem atingir o resto do corpo.

Hoje é dia de tranças.

— Vou ligar à Miriam... mas não vou falar do homem fantasma. Essa é a minha outra história. E hoje não me apetece realidades. Estou cansada de pensar.

Vou ligar-lhe em modo brincadeira. Talvez consiga fingir que está tudo bem.

 

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