08 - PRENDAS, PROMESSAS E BRASAS ACESSAS
Aprender com o tempo a desligar a mente das coisas
inúteis para se focar apenas no essencial é algo que Miriam há muito deixou de
praticar. Vive a sua vida num desequilíbrio constante, tão intenso que chega a
incomodar quem com ela convive. Gosta de navegar num mar permanente de
problemas, reais ou inventados. Precisa de ajuda, embora viva convicta de que
são sempre os outros que mais necessitam dela.
Habituou-se a ultrapassar com naturalidade a linha
ténue entre o elegante e o burlesco, tudo em nome de atrair os olhares para si.
Nenhum destes supostos defeitos alguma vez beliscou a sua amizade com Sandra, bem
pelo contrário. A relação entre as duas é antiga, sólida, feita de provas
sucessivas. Miriam é, para Sandra, a “sua pessoa”. Estava escrito nas estrelas.
E a bem cedo tratou de o provar.
— Olá, Miriam. Bom-dia! Hoje acordei com um grande
problema… não sei o que te oferecer. Tu tens gostos excêntricos, e exigências elevadas...
— Como assim? Queres que eu ande mal arranjada? Achas
mesmo que era capaz de me conformar a viver numa moradia sem vista panorâmica,
sem ginásio, sem piscina infinita e sem três ou quatro guarda-costas para me
sentir minimamente segura?
Sandra soltou uma gargalhada.
— Este ano tem feito tanto frio — continuou Miriam. —
Quero que me ofereças lenha para a lareira, para me aquecer como deve ser. E
depois quero que me tires a roupa e te enrosques comigo à frente do lume. É
isso que eu quero que me ofereças este ano.
— Tenho tantas saudades tuas… Se soubesses a falta que
tenho sentido dessas nossas brincadeiras…
O rosto de Miriam iluminou-se do outro lado do visor.
O sorriso era vitorioso, cúmplice.
— E eu tenho sentido falta das nossas aventuras. Dos
nossos acampamentos improvisados em frente à lareira. Essa é a prenda que eu
quero. Vamos fazer isso, Sandra. E, por favor, não me venhas com desculpas
esfarrapadas por causa da Covid. Sei que o momento parece errado… mas agora já
nada é como dantes. Pensei bastante naquilo que disseste da última vez. Decidi
não convidar mais ninguém. Não vou fazer festa. A única pessoa que eu quero nos
meus anos… és tu.
Sandra ficou em silêncio. A sinceridade crua na voz da
amiga desarmou-a. A conversa tinha tomado um rumo inesperado.
— Achas mesmo que vamos conseguir voltar a dormir as
duas como dantes? Achas que sim, Miriam? E onde é que eu vou encontrar lenha?
— A sério, minha querida? A lenha não interessa para
nada. Só vamos precisar uma da outra. Estou farta de estar aqui sozinha, a
ganhar raízes como uma árvore desesperada. Tenho aqui tudo o que vai ser
preciso. Boa comida, bom vinho… só faltas tu.
— És completamente louca, sabias? E o pior de tudo é
que não consigo deixar de gostar de ti. Tu sabes disso. Sabes que é exatamente
por seres assim que eu te adoro. E depois abusas de mim.
— É para veres as saudades que tenho… até te vou
deixar fazer todas as tranças que quiseres no meu cabelo. A vida é breve demais
para não fazermos o que nos apetece, Sandra. E contigo, a vida sabe sempre
melhor, minha doida querida.
Conheceram-se no décimo ano do secundário, no final
dos anos 80. No início, as colegas de turma não sabiam bem como lidar com
Miriam. Ela estava prestes a fazer dezassete anos, já era casada e estava
grávida. Um fenómeno, na altura. Mas só para quem não a conhecesse
verdadeiramente.
Sandra aproximou-se aos poucos. Era das poucas colegas
dispostas a fazer trabalhos em grupo e marcar sessões de estudo em casa. Foi o
início de uma história em comum. Miriam divorciou-se pouco depois do nascimento
do filho. O menino tinha cerca de dois anos e meio quando ambas entraram para a
faculdade.
— Lembras-te, Miriam, daquele dia em que íamos as duas
ao casamento da Ivone? Tu pediste para eu ir dormir a tua casa na véspera, por
causa de um idiota qualquer que andava a atirar-se a ti naquela altura. O teu
filho estava com o Pedro nesse fim-de-semana, e o Carlos ainda nem sequer fazia
parte da minha equação. Tinhas ido a um jantar por causa de uma proposta de
emprego num restaurante no Bairro Alto e eu fui ter contigo depois, para
garantir que o maluco não te perseguia.
— Lembro-me tão bem… mas o que eu mais recordo dessa
noite foi o quanto tu estavas deslumbrante. Maravilhosa. Tive a certeza
absoluta, nunca vi mulher tão bela na vida. Nenhuma noiva, rainha ou imperatriz
poderia causar em mim tal arrebatamento. Às vezes fecho os olhos só para te ver
outra vez nesse momento. À porta do restaurante. E o ar de felicidade que
fizeste quando me viste…
— O que eu sei é que estes anos passaram bem depressa
— respondeu Miriam, num tom mais baixo. — Lembro-me do casaco maxi vermelho,
que me tapava quase todo o vestido cinza da Ana Salazar. Comprei-o na Rua do
Carmo. Usava-o como uma espécie de capa. Tu estavas apoiada num banco, junto ao
jardim de São Pedro, de costas voltadas para a árvore. O teu rosto de boneca
brilhava mais do que a lua. Fui logo ter contigo. Abracei-te com muita força.
Depois fechei os olhos e deixei que me beijasses. Queria que o atrasado mental
do Orlando pensasse de mim aquilo que ele não queria.
— Pois foi, Miriam… nessa noite dourámos-lhe a vista
com ouro verdadeiro.
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