09 - O RETIRO DAS SOMBRAS

 

Após o divórcio, Sandra sentiu-se livre como um pássaro. Um espírito leve, finalmente liberto dos nós e sombras que durante anos lhe toldaram a mente. O filho, Nuno, já crescido e maduro o suficiente, soube lidar com a nova realidade com uma serenidade que a surpreendeu. Terminada a primeira época de frequências na faculdade, acabara por confessar o alívio que sentiu ao ver os pais finalmente separados.

Sandra passou anos a investir numa relação que lhe cravou mais farpas do que beijos, mais silêncio do que consolo. No início, é verdade, houve alguns momentos bons, uns fios dourados, inestimáveis, que ela foi usando para enfeitar essa delicada fantasia chamada casamento. Uma tela que ainda tentou bordar com ideais de amor. Mas o que nasceu com gratidão, foi aos poucos tingindo-se de um fado escuro, apagando cada vez mais o sentido de tudo. Persistiu. Afogou saudades do muito que nunca aconteceu. Um esforço magoado, quase inútil.

Por fim, encontrou um refúgio secreto, um retiro de paz no interior da mente. Um lugar seu, intocado, onde voltou a conjugar virtudes que pensava ter perdido. E foi ali que, após atravessar as florestas mais densas e pacificar os monstros do passado, um tesouro se revelou. Ramos de flores vieram ter com ela como promessas de um amanhã possível.

Enxugou lágrimas. Calou prantos. Tornou-se mais atenta às leis invisíveis da harmonia, à água das fontes, ao murmúrio dos rios, à sombra dos penhascos, ao voo dos pássaros, às estações, à alternância de calor e frio. Isso bastou-lhe. Depois, olhou para as estrelas. E dormiu. E acordou.

O dia amanheceu frio e chuvoso. Sandra saiu para ir às compras. No rádio, as notícias martelavam números indesejados. A Pandemia não dava tréguas. Os dias pareciam cada vez mais tristes, tão tristes que até os pássaros haviam deixado de cantar.

— Desejava poder esconder-me disto tudo — murmurou para si mesma. — Ver um sinal de esperança, uma luz que nos devolvesse tranquilidade.

Cumpria escrupulosamente as normas de higiene e todos os protocolos de saúde. Não corria riscos desnecessários.

Hoje, ao acordar, dera com o céu coberto de nuvens plúmbeas. Uma cortina de tristeza tapava o sol. Recordou os passeios com o avô Faustino junto ao mar, a voz das ondas, o vento a empurrar a espuma, o riso das gaivotas. Mas o céu de agora não tinha a cor daquele outro mar.

Olhou em redor e encontrou Firmina, enrolada sob o edredão. A pequena gata preta dormia, ainda cansada do reboliço da noite anterior. Tinha o sono leve. As noites agitadas da dona deixavam-na inquieta, sentia-lhe o coração aos saltos, atormentado pelos sonhos que a levavam de volta aos seus recantos secretos.

É nesses lugares, nos seus sonhos, que Sandra se reconhece. Uma alma negra e livre. Negra não da cor do mal, mas do mistério. Serena. Justa. Obcecada por uma boneca bailarina, branca como um osso, de longos cabelos que gosta de entrançar, para quem escolheu mais de cem nomes. Vive com ela em bosques escondidos, em cidades inventadas, lado a lado com fantasmas que deseja reais.

No sonho da véspera, Sandra encontrou-a de novo.

A boneca. A irmã-boneca.

Estava caída, abandonada perto da mesma árvore do homem que a visitara. Escuro. Silêncio. Os olhos já sem vida. Mas ainda com aquele sorriso malicioso, de menina má e terna. Sandra tocou-lhe no rosto, ao de leve. Três dedos estavam ausentes, espalhados no chão.

Foi aí que se lembrou da mensagem. Um bilhete antigo, de infância, que certa vez lhe escrevera e escondera dentro do seu corpo de pano. Se aquela fosse mesmo ela, bastaria rodar-lhe a cabeça e abri-la. O bilhete deveria lá estar.

Mas não houve tempo. Sandra acordou. Respirava ofegante. O corpo, quente sob a manta. Os olhos, piscando contra a claridade da manhã.

— Hoje sonhei com a minha irmã Helena… — disse em voz baixa, olhando para a gata. — Credo, Firmina… achar-me-ias ridícula se te contasse onde estive. Juro que vi os olhos da minha boneca, entreabertos, como se ainda me esperassem. Foi um reencontro… mágico. Estava mais velha, sim, mas aquele sorriso… Ainda não foi desta que a consegui sepultar.

A cama parecia remexida por um par de amantes apaixonados. Firmina fez o seu percurso habitual até à sala, e dali para a cozinha, onde começou a farejar os restos de comida no caixote do lixo. Sandra logo a iria descobrir e ralhar com ela.

Entretanto, no duche, deixava a água quente escorrer por si. Sentia o corpo aquecer, como se lhe devolvesse a alma.

Os crepes de ontem estavam deliciosos. A massa também. Tudo continuava no lugar, mesmo que, por dentro, quase tudo tivesse mudado.

 

Comentários