10 - A MALDIÇÃO DE HELENA
Albertina resolveu desfazer-se da boneca da filha,
abandonando-a no centro de um bosque. Deixou-a meio enterrada no terreno, com a
cabeça virada para o lado e as tranças do cabelo muito desarranjadas. O seu olhar
estava inexpressivo, talvez o espírito lhe tivesse voado do corpo.
Convencera-se de que, dentro de sua casa, habitava uma quantidade significativa
de objetos amaldiçoados. Decidiu, então, encetar uma jornada para se libertar
dos que mais a assombravam e lhe causavam desconforto. Vivia em constante
sobressalto. Ataques de pânico apoderavam-se dela, paralisavam-na e faziam-na
temer ficar prisioneira no próprio lar.
Quando teve a primeira crise, ficou imóvel, obrigada a
assistir aos sinistros acontecimentos que pareciam surgir do nada. A casa
aumentou de volume, as paredes tornaram-se pesadas, as janelas ganharam
dimensão. Enquanto a mãe se arrastava pelo chão para tentar afastar-se dos
vidros que julgava prestes a estilhaçar, Sandra fazia os deveres no seu quarto,
alheia ao drama. A distância entre elas era pequena, mas parecia de quilómetros.
Albertina gatinhava no soalho, tentando alcançar o sofá da sala de estar, o seu
porto seguro. Os objetos sombrios da casa sussurravam-lhe segredos sinistros,
mergulhando-a num sonho fantasmagórico.
Quando acordou, moveu os olhos com medo e reparou que
tudo estava como dantes. No entanto, o sonho fora demasiado real. Pareceu-lhe
evidente que os artefactos da casa estavam possuídos pelos fantasmas dos
antigos donos.
— O que é que acabou de me acontecer? — murmurou,
sentada, com a cabeça apoiada nas mãos, temendo que a resposta fosse mais
complexa do que um simples ataque de pânico.
— Acham-se mesmo capazes de me enlouquecer?
Imaginam-se a atormentar os meus dias, aí do vosso poiso nas estantes? Ou eu
não me chame Maria Albertina da Fonseca, ou o vosso fim será num esgoto
miserável, num baldio distante, para onde vos hei-de atirar e de onde jamais
poderão ser resgatados!
Sandra apareceu na sala com a boneca ao colo. Albertina
mandou-a regressar imediatamente ao quarto. Disse-lhe que já era crescida
demais para andar com aquele brinquedo, e que o fosse guardar. A filha
permaneceu serena, olhando-a em silêncio, e acariciou com ternura o rosto da
boneca.
— Olha, mãe… aqui está, viste? A Helena riu-se para
mim. Agora mesmo. Um sorriso verdadeiro. Vês? A minha irmã Helena sabe sorrir
quando está contente. Não é brincadeira, mãe, eu já te tinha dito.
Sandra falava rapidamente, mais por excitação do que
nervosismo. Brincava e fingia que Helena era uma menina verdadeira. E agora,
naquele instante, tinha a certeza. Ela respondera-lhe com um sorriso.
Num rompante, Albertina arrancou o brinquedo das mãos
da filha, cedendo a um impulso cego. Virou a boneca ao contrário, segurando-a
pelos tornozelos, e começou a bater com ela na filha com violência. Acertou-lhe
na cabeça, no ombro, nas costas. Um dos braços da boneca soltou-se com a força
da pancada e embateu na mesa, partindo três dedos da mão.
Sandra ficou horrorizada, paralisada. O tempo
suspendeu-se naquele lugar. Por breves instantes, tudo parou. Em vez da irmã
loura que lhe sorrira, Helena era agora uma boneca desmembrada, com dedos
espalhados pelo chão.
Nada houve de familiar nas palavras da mãe. Muito
menos naquela agressão absurda, que nunca foi explicada nem acompanhada por
qualquer pedido de desculpas. Se tais palavras foram alguma vez proferidas,
ficaram para sempre escondidas na cabeça de Albertina, sob a forma de uma
violentíssima dor de cabeça.
Sandra arquivou o acontecimento de imediato numa caixa
esquecida da sua memória. Mas soube, desde então, que nunca mais tinha gostado
da mãe. Disso ela tinha a certeza, mesmo sem jamais o ter declarado.
Recordar aquele dia é-lhe penoso. Não gosta de
recordar as dores físicas, o hematoma, a contusão, a fratura, nem a dor
emocional, essa não menos intensa. Helena, como o seu coração de criança,
ficara amputada e partida. O braço tinha embatido numa esquina da mesa que lhe
quebrara e cortara os delicados dedinhos. Havia tempo para tudo, mas não houve
tempo para nada. Sandra deveria tê-la enterrado ali mesmo, mas em vez disso
pegou nela, com todos os seus fragmentos, e levou-a de volta para o quarto.
Colocou-lhe o braço no lugar com cuidado e delicadeza. Pegou-lhe ao colo,
encostou as bochechas à testa pálida da boneca, branca da cor do osso, e com os
olhos meio abertos. E confessou-lhe:
— Apetecia-me ligar para a polícia e fazer queixa da
mãe.
Sempre que Sandra recorda aquele dia insano, sucede-se
um longo silêncio. Prende a respiração durante muito tempo, tentando evitar
sentir as mesmas dores. Fecha os olhos e imagina-se a cruzar os braços diante
da cabeça, a proteger-se da sova, revendo tudo em câmara lenta.
E é então que o nariz começa a sangrar.
Ela deseja que o fantasma da irmã a revisite. E
deseja, mais do que tudo, que seja real. Porque quanto mais real for, menos
sobressalto lhe causará.
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