11 - À DERIVA

 

Helena virou-se para Sandra ao ouvir o seu nome gritado. Demonstrou alegria em vê-la chegar. A boneca avisou-a que era preciso muito cuidado pois o chão transformara-se num extenso banco de areias movediças. Deveria contornar o perímetro e avançar com extrema cautela até alcançá-la. Teria de ser exímia a caminhar, balançar suavemente as pernas e saltitar para escapar às armadilhas. Não chegaria lá por acaso. Os seus movimentos, embora vestida apenas com uma etérea camisa de noite colada ao corpo suado, eram decididos. À medida que avançava, o rosto de Helena tornava-se mais nítido. Parecia agora o de uma rapariga mais velha e enigmática. Um fino colar de prata ao pescoço tornava-a ainda mais estranha. Por um momento, Sandra hesitou, mas conseguiu chegar junto dela e endireitou-lhe as tranças desalinhadas. Franziu o sobrolho e falou alto, pois não ouvia as próprias palavras. Os olhos da irmã-boneca brilhavam como cacos de vidro da mesma cor dos seus.

— A tua mãe mentiu-te. Agora sabes que mentiu. Separou-nos, e tu acreditaste no que ela sempre disse. Que razão teria para isso? Ciúmes da nossa amizade, talvez inveja dos nossos segredos... quem sabe se esses ódios não se transformaram naquele pânico descabido? Sim, posso confirmar o que já pressentias. A tua mãe abandonou-me aqui. Não me deu a ninguém.

O solo começou a ceder sob os pés de Sandra. O que era firme deixou de o ser. Falava, gritava, mas nada escutava. Compreendeu que ali nascia a sua sepultura.

— Não grites, Sandra, não adianta. Aqui no bosque ninguém te ouve. Ficaremos sepultadas no mesmo túmulo — declarou Helena, com uma luz enigmática a cintilar nos olhos de boneca. A voz soava mais grave. Mais adulta.

Enterrada até aos joelhos, Sandra não sabia se conseguiria superar aquela adversidade. Ceder ao pânico seria inútil. Respirou fundo, lembrou-se dos enredos que lera, e ficou imóvel assim que as ancas foram engolidas pela areia. Concentrou-se na respiração, nos músculos principais do corpo. Lentamente deitou-se de costas, para ampliar a superfície de contacto. Demorou até começar a flutuar. Descansou. Depois, inclinou-se para trás, tentando libertar as pernas com movimentos muito suaves. Começou a arrastar-se com as mãos, deslizando à superfície durante toda a noite, até alcançar terra firme. Depois, rodou os braços e puxou-se de volta ao seu refúgio sob o edredão.

Com um sorriso amarelo no rosto, percebe que regressou. Firmina dorme ao fundo da cama. Sentada, mãos espalmadas contra a cabeceira do barco-cama que ainda balança, tenta recordar-se do que sonhou. Estibordo é à direita, bombordo à esquerda. O leme está partido e o barco à deriva, tal como esta Pandemia. O mundo inteiro deveria comportar-se de outro modo, em vez de conduzir a humanidade à exaustão redefinindo fronteiras, confinamentos, limites.

Para o bem e para o mal, hoje é domingo. O vento sopra lá fora com alguma violência. Pouco falta para as dez da manhã. Aos domingos, Sandra acorda mais tarde. O dia não convida a passeios. Choveu durante toda a noite e as estradas estão perigosas. O tempo tem sido implacável nestes dias de Pandemia. Traz à tona memórias que Sandra preferia manter encerradas, histórias antigas guardadas a sete chaves, e tem deixado a sua marca, sem pedir licença, nesse labor silencioso. Ela suspira; como é inútil discutir com o tempo, lança-lhe insultos e impropérios.

As promessas de viagem voltam a ser adiadas. Sandra nunca desejou fazer um cruzeiro, nunca sentiu o apelo do mar, mas hoje, até velejaria. Deve ser mais simples, se houver um leme seguro para orientar o batel contra o vento e as ondas.

O barco-cama segue à deriva, embalado por uma corrente invisível.

É difícil encontrar equilíbrio numa realidade destas. Sandra enfrenta o espelho e as lágrimas descem-lhe pelo rosto. Se tivesse nascido rapaz, teria sido o príncipe da família, o dono de razão em todas as circunstâncias. Ainda ecoam, do outro lado, as palavras do pai, lamentando não ter tido um menino. A imagem que vê devolve-lhe uma expressão estranha, como se lhe implorasse para saber por que tudo aquilo lhe volta à memória. Recusa responder ao seu reflexo, já não lhe apetece brincar ao faz de conta. A outra Sandra mostra um misto de alívio e desilusão. Aos domingos, o confinamento pesa ainda mais.


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