12 - ECOS DA ETERNIDADE

  

—Isto está mesmo a acontecer! — diz Sandra, como quem fala de dentro de um vidro fosco, cada vez mais anestesiada pelo peso lento da Pandemia. A voz do homem fantasma regressa, sem aviso, tal como tinha aparecido pela primeira vez. Presença sem corpo, sem rosto, mas com uma vibração que se impõe no silêncio. Ela escuta-o antes de se dar conta que já está outra vez a falar-lhe.

— Que queres saber a meu respeito? Se ando ao sabor da corrente ou se obedeço à minha vontade? É difícil responder-te… nem do meu nome me lembro.

— Como assim? — Sandra hesita, mas a curiosidade empurra-a para a frente. — Estou intrigada com o teu passado. Essa amnésia não me convence. Quero saber como te chamas. Saber coisas tuas… ver se entendo o que te traz até mim. É o mínimo, não achas? Já que decidiste visitar-me assim, deitado na minha própria cama...

— Tento descobrir coisas sobre ti, mas não tem sido fácil. Escondes-me quase tudo. Fala-me dos teus pais. Quem foram? O que fizeram? Tenho os meus motivos, e não quero que me ocultes nada. Quanto a mim, do pouco que me recordo, nada tenho para esconder. Se fosses psiquiatra, talvez te falasse de tudo sem reservas. Mas assim... ainda mal te conheço. Preciso de te conhecer melhor. Por isso é que te visito. Por isso… e por acreditares em fantasmas. Isso é fundamental.

(Pausa longa. Há um som leve, como vento entre folhas secas.)

—Espera... acabo de me recordar do meu nome. Sim. Chamo-me Jaime. Jaime Cerqueira. Tive um ataque. Uma trombose cerebral. Estava sozinho em casa, sentado no sofá, a ver televisão. Num instante, desmaiei. Nunca mais acordei. Morri na ambulância a caminho das urgências. Um momento era eterno... no seguinte, já não havia eternidade para festejar.

O silêncio instala-se, apaziguador. Uma brisa ligeira parece correr dentro da casa de Sandra. O tempo suspende-se. Poderá ela manter este diálogo com uma voz que só ela ouve? Com uma alma que não vê, que não consegue decifrar? Os poucos gestos, as palavras dispersas, não chegam para construir sentido e, ainda assim, há algo de familiar, uma estranha ternura nessa presença que a visita. Permite-se permanecer. Deita-se de costas, fecha os olhos. Respira. Ouve sem saber se escuta as planícies do vazio ou se é a consciência do universo a fitá-la, tal como no poema de Sophia.

— Quando casei com o Carlos — começa, com um fio de voz —, desejei acreditar que era possível o amor. Mas percebi tarde demais que estava enganada. Gostava dele, sim, mas só o suficiente para agarrar com unhas e dentes a oportunidade de sair de casa dos meus pais. Já não aguentava mais… tudo o que diziam, o que faziam. O Carlos não teve culpa. Mas eu não o amava. Fiz-lhe coisas que ele ainda hoje não sabe. Estive perto de lhe contar, várias vezes, mas acabei por desistir. Jurei que nunca o faria.

— Envolveste-te com outros homens, foi? Traíste-o?

— Queres maior traição do que nunca lhe ter confessado a verdadeira razão do casamento? E sim… era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Houve noites em que me sentia completamente deslocada nos braços dele. Noites que fui esquecendo, enterrando… e que me levaram a lugares onde só vagueiam fantasmas. Sentia-me bem ali, perto deles. Ouvia-os, e eles respondiam. Acertavam o meu nome. Acredita, Jaime, era nos cemitérios mais cheios que eu encontrava a ternura maior. Ali navegava com mais segurança entre dias exaustos e noites desamparadas.

— Gosto de ti, da tua companhia. Do teu rosto branco e do teu sorriso sereno. Se quiseres, podemos continuar a conversar. Sem compromissos. Foi a tua irmã-boneca que me pediu para vir. Custou muito encontrar-te. Mas as tuas memórias ajudaram-me. Também tu vieste de longe, Sandra… e como deves ter sofrido para chegares até aqui sem nunca teres sentido verdadeiro amor. A Pandemia deu-te o tempo e o espaço para mergulhares nas emoções. Já não estavas habituada. Gosto de corromper os silêncios para me lembrar de quando ainda era humano. Quando pisava musgo, areia, terra… quando o vento me empurrava nas tardes de tempestade e a chuva me batia na cara. Apetece-me beijar-te agora, mas não posso. Ainda é cedo.

O segundo confinamento tem sido mais difícil que o primeiro. Sandra perdeu-se no tempo. Os dias são uma massa indistinta, as noites prolongam-se até quase ao amanhecer. Vive absorvida pelo mundo digital. Reuniões que se sucedem, um ritmo feroz, quase irreal. O trabalho ocupa tudo.

De quando em vez, levanta os olhos do ecrã e vê um açor a planar, alto, entre nuvens suaves. Suspira. Já não anda de bicicleta. Já não lê tanto quanto desejava. Por vezes esquece-se de alimentar a gata, não liga a Miriam, não faz yoga. Descuidou a alimentação. E a bebida tornou-se um hábito, uma companhia mais constante.

A última vez que viu o mar foi em setembro. Entregou-se às ondas como quem regressa ao colo do mundo. A praia estava quase vazia. Céu limpo. Água morna. Gaivotas em voos rasantes, pintando o fim do dia. Nesse instante, lembrou-se de Fernão Capelo. E sentiu que, afinal, a eternidade talvez fosse feita de pequenos “agoras”.


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