13 - A INVERNO TAMBÉM SONHA COM A PRIMAVERA
O que é que se passa na cabeça das
pessoas quando se vêem privadas da sua liberdade?
Sandra não procura respostas
racionais, apenas se deixa embalar por essa pergunta que lhe ressoa por dentro
como um eco ancestral. Sente-se anestesiada, talvez a alma lhe tivesse sido
levemente sedada para suportar o que insiste em parecer insuportável. Há uma
estranha sensação de que todos andam a sentir-se bem sem estarem
verdadeiramente bem. O gesto simples de sorrir tornou-se, nos últimos tempos,
uma coreografia esquecida, uma batalha de cada dia. Deixam de saber onde
guardaram as coisas, não fazem ideia, e depois procuram, e não encontram. Deixam,
lentamente, de saber quem são.
Se Sandra fosse realmente quem é,
nunca se teria deixado acomodar a tantas meias-verdades. E se, de súbito, passasse
a ser essa outra pessoa, a verdadeira, a não-camuflada, talvez os seus amigos
deixassem de a reconhecer. Talvez ninguém a reconhecesse. E isso, talvez mais
do que tudo, lhe causasse dor.
O passeio que empreende pela cidade
vazia, mascarada e calada, é menos um exercício físico do que um rito íntimo.
Precisa de sentir o corpo em movimento para verificar se ainda existe sangue
dentro de si, se o espiritual ainda lhe pulsa em algum canto, ou se já se
desprendeu de vez da ideia de amor. O ar frio cola-se-lhe ao rosto, mas sem ser
agressivo. Parece mais um espelho da sua própria interioridade. A infância
regressa, cruel, com as imagens difusas da irmã-boneca.
Helena. Nome breve. Presença eterna.
Desaparecera sem aviso.
A mãe, com o seu instinto de ordem e
severidade, afastara-a. Dissera que era hora de crescer, de deixar as
fantasias. Mas para Sandra, Helena não era fantasia. Era companhia, era
espelho, era consolo. A mãe roubara-lhe a única forma de amor que conhecia.
Desde então, o mundo tornara-se incoerente e injusto. Um campo de batalha. Uma
estrada maldita que parecia não ter fim.
— Tenho saudades da minha
irmã-boneca… — murmura, como quem envia uma prece ao vento. — Pandemia
de merda… Velhaca! São tantas as vidas já ceifadas. Um dia destes hei de
encontrar um amor verdadeiro. Por onde andas, meu anjo Helena?
De volta a casa mergulha num modesto
livro de poemas, o único refúgio que ainda não a dececionou. Companhia fiel,
discreta, silenciosa. Não sabe ao certo que caminho retomará depois de tudo
isto. Talvez não haja mais agosto, talvez adormeça longamente como a Bela
Adormecida, esperando o desfecho desta distopia que consome os dias.
Pega no telefone. A voz de Miriam é
uma tábua de salvação, um sussurro conhecido num mundo demasiado estranho.
— Miriam, escuta… estou a perder as asas. Custa-me levantar da cama.
Choro baixinho, quase sem som. Sinto-me exausta. Que fizemos nós para merecer
esta Pandemia? Explica-me outra vez o que está a acontecer. Sinto até uma
saudade absurda dos dias em que acreditava nos meus pais. Nos conselhos deles.
Mesmo que fossem injustos… Havia naquilo alguma ordem. Agora, só há vazio. Vem
cá, amiga. Vem apertar-me o pescoço com as tuas mãos macias enquanto te faço
tranças no cabelo. Vem divertir-te comigo. Podemos fingir que isto já acabou.
Aceita este meu pedido piegas, este desejo guloso. Preciso de um abraço teu.
Do outro lado, Miriam não hesita. A
voz dela aquece o espaço que separa os corpos.
— Morro de saudades tuas, Sandra. Claro que vou. Hoje mesmo. Levo
doces, vinho, e deixo-te escolher o filme. Ou escolho eu. Tanto faz. Importa
estarmos juntas. Quero cuidar de ti, lembrar-te que ainda existe ternura neste
mundo que parece ter esquecido como se ama. A solidão fez-nos desaprender a
linguagem dos afetos, mas há tempo para reaprender. Basta abrirmos as portas
certas.
Sandra sorri com os olhos. A
melancolia que a cobria como um manto começa a soltar-se, fibra a fibra. Mas o
peso ainda está lá. Ainda magoa.
— Não tenho conseguido dormir, Miriam. E... ele voltou. O homem
fantasma.
— A sério? Falaram?
Sandra aninha-se no sofá, apertando um
braço contra o peito. Firmina, a gata negra, desce com elegância do alto do
armário e instala-se ao lado da dona. Uma pequena esfera viva de calor.
— Falámos de mim, de quando era pequena. De como sinto cheiros
antigos. Imaginei a parte superior dos seus ombros, o cabelo, os gestos.
Falei-lhe do Carlos. Desabafei. Senti, por um segundo, que ele ia tocar-me, mas
não o fez. Disse que lhe apetecia beijar-me, mas era cedo. Depois reparei que
um vestido meu estava caído junto ao roupeiro. Estava quente, como se o tivesse
acabado de usar. O corpo tremeu. Os lábios ficaram azuis, os pés adormecidos.
Pensei que podia ter apanhado o Covid. Foi horrível.
Miriam escuta em silêncio. Há coisas
que não se explicam, mas que se compreendem no fundo do peito. Sabe que Sandra
não está a inventar. Conhece-lhe a alma, conhece-lhe as sombras. E sabe,
também, que às vezes os fantasmas são apenas as formas que a dor encontra para
pedir colo.
— Vamos abrir o vinho, Sandra.
Hoje é noite de cuidar das asas. Mesmo que ainda não possas voar.
Lá fora, o inverno insiste em permanecer.
Mas há uma promessa silenciosa de que a primavera, ainda que tardia, virá. E
trará consigo qualquer coisa parecida com esperança.
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