14 - NOSSA SENHORA DO VAZIO
Albertina guardava em si os destroços de uma vida
amargurada, que se foram espelhando, dia após dia, na expressão cada vez mais
dura e triste do seu rosto. Queria ser amada como toda a gente, mas cedo se viu
confrontada com um rumo distinto daquele que idealizara nas fantasias discretas
da juventude. Depressa o lindo dia se enegreceu sem dó nem piedade.
Sabia que o marido a julgava por não ter sido capaz de
lhe dar um filho varão. Nunca lhe dissera com todas as palavras, mas Albertina
reconhecia aquele tipo de silêncio espesso, cortante, que a acusava de maneira
inclemente. Cabelos brancos pelos ombros lhe cresceram como presságio de morte
anunciada, de uma vã glória sem sorrisos, da maternidade incompleta que a
corroía em silêncio.
As enfermeiras da maternidade ficaram perplexas com a
postura rígida do marido quando viu pela primeira vez o rebento, de sexo errado,
deitado no berço. Ele não disse uma palavra. Limitou-se a olhar a criança como
se contemplasse uma falha. Albertina tinha esperança que fosse diferente, mas
no seu íntimo já sabia que seria assim. Nada podia fazer. Fora aconselhada a
rezar com fé, a pedir muito a Nossa Senhora que lhes concedesse a graça de um
menino. E ela rezou. Rezou com fervor doentio. Terços, missas, súplicas
murmuradas de madrugada. As peregrinações feitas em pensamento deixaram apenas
uma imensa desilusão e um vazio impossível de preencher.
A menina parecia não ter qualquer valor para o pai
bruto que, na verdade, mal a aceitou. Uma reação estúpida, irreal,
inexplicável, mas persistente. Albertina, como tantas mulheres ensinadas a
suportar, convenceu-se de que a culpa era sua. Passava dias inteiros com a
filha recém-nascida nos braços, a aquecer o coração destroçado. Sentia que
merecia melhor homem, ou pelo menos, uma vida diferente. Chegou a desejar
morrer. Para ela, já não faria diferença.
Foi então que o amor por Sandra começou a ficar
congelado, suspenso por entre a dor e a apatia. O traste do marido revelara-se
uma besta demasiado perigosa para ser contrariada. Os pequenos olhos da filha
receberam lágrimas que não compreendiam, lágrimas silenciosas que escorriam sem
defesa.
Albertina tentou matar-se. Depois pensou em deixar a
criança nas margens do rio, ou junto à linha de caminho de ferro. Ou ainda
embrenhar-se com ela num bosque e abandoná-la entre ramos e silêncio. Não o
fez. Arrependeu-se por não conseguir controlar as emoções. Mas já era tarde. Os
pensamentos impuros, os delírios sombrios, já se haviam entranhado e nela começou a germinar um processo de
loucura
O marido dizia-lhe, com tom impaciente, que ela
precisava de tratar aquela depressão. Que não suportava vê-la sempre em
lágrimas. As palavras saíam-lhe pesadas, duras, cinzentas da cor do chumbo. A
mágoa condensava-se em Albertina até se transformar num pânico de expiação
dolorosa.
Mas o pior ainda estava por vir.
— Dona
Albertina, sente-se, sente-se, por favor. Teria sido bom se tivesse vindo
acompanhada pelo seu marido. Temo que as notícias não sejam as melhores
— disse-lhe o médico obstetra, na segunda consulta pós-parto.
A experiência na maternidade fora traumática. Tudo ali
funcionava com uma frieza quase mecânica, impessoal, os corpos meras peças
temporárias. Havia várias pessoas na sala, mas Albertina sentira-se mais
sozinha do que nunca. Quando percebeu a gravidade do momento, entrou em pânico.
Tentou levantar-se, mas os pés inchados doíam-lhe e pesavam como pedras.
Precisava de se mexer, mas não conseguia. O rosto do médico e das enfermeiras
traía uma ansiedade desconcertante. Suou tanto que os cabelos encharcados
colaram-se-lhe aos ombros, ao pescoço, às costas.
Fixou os olhos no velho relógio da sala. O tempo
parecia nem se mover, resistia em avançar. Perguntou as horas meia dúzia de
vezes, insistentemente, até perceber que o ponteiro dos segundos começava,
enfim, a retomar a sua velocidade normal. Às onze horas e trinta e sete
minutos, levantou a mão para se benzer. Depois, chorou em silêncio, para
dentro.
— Sente-se,
Dona Albertina. Por favor. Sabe… não há uma forma suave de dizer isto. Os
resultados dos exames vieram confirmar as minhas piores suspeitas. Lamento
imenso, mas a senhora nunca mais poderá engravidar.
Albertina ouviu, mas não conseguiu aceitar. Nossa
Senhora prometera e não cumprira. Talvez nunca se tivesse importado. As orações
não tinham sido escutadas. Gritou em surdina, sem som, como quem afunda numa
água sem fim. O pensamento enredou-se numa espiral sem saída. Olhou para o
relógio na parede, igual ao da sala de partos, onde o tempo, de novo, parecia
desacelerar. Talvez o doutor estivesse enganado, talvez o diagnóstico tivesse
sido apressado. Quem sabe não voltaria atrás?
Mas no fundo, soube. Soube que aquelas palavras
encerravam qualquer possibilidade de esperança. E percebeu, com uma serenidade
doentia, que talvez nunca mais fosse capaz de chorar.
Despediu-se a balbuciar. Os olhos vermelhos e
inchados, o corpo tomado por um cansaço tremendo.
Os passos tornaram-se vacilantes. As pernas e os pés
doíam-lhe horrores. Sentou-se num banco de jardim, a tentar recompor-se. O medo
de que alguém a visse naquele estado tornou-se maior que o desespero. A
infelicidade chegara, sem anúncio, virara-lhe a vida do avesso num dia que,
como tantos outros, começara com uma aparente vulgaridade.
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