15 - ASAS INVISÍVEIS

A noite cai com o peso de um presságio. Um relâmpago risca o céu com uma fúria branca, seguido por um trovão que faz estremecer as vidraças da sala. O coração de Sandra sobressalta-se. Sabe, como sempre soube desde criança, que os mortos espreitam durante as noites de tempestade. Desde o início do ano, as aparições tornaram-se mais frequentes, mais nítidas. Talvez a Pandemia lhes tivesse aberto passagem. O fantasma de Jaime, antes difuso e recuado, surgia agora com uma nitidez insuportável.

Os seus lábios procuram, no vazio, a centelha de um corpo já ausente.

— Jaime! — sussurra com uma urgência que mal consegue conter. — Por onde andas?... Não me faças esperar mais. Não quero delicadezas. Quero que me faças sentir um arrebatamento de alma.

A tempestade Karim rebenta num assobio brutal de ventos ciclónicos. A porta da varanda escancara-se com estrondo, e um sopro gélido percorre a sala. Firmina, a gata, ergue a cabeça num movimento brusco e desaparece numa correria desenfreada.

Sandra recua.

— Que barulho foi este?! — grita, alarmada, até reconhecer a silhueta negra a fugir pelo corredor. — Ai, Firmina, que susto me pregaste!...

Segura a porta da varanda antes que o vento a volte a escancarar. Os trovões ribombam como tambores de uma guerra antiga.

— Ainda fico surda!

É então que vê Jaime, imóvel junto à porta da cozinha, com um sorriso, sereno. O caos não o afeta.

— A tua irmã boneca disse-me que precisavas de falar comigo — anuncia, numa voz abafada pelo estrondo dos céus. — Não gosto de tempestades. Lembram-me explosões. Detesto-as.

Sandra senta-se no sofá. Respira fundo, tentando acompanhar o compasso da tempestade com os dedos. Agora apercebe-se melhor da sua presença.

— Como é que entraste aqui?... Vieste nas asas da tempestade, foi isso? Costumas vir ter comigo à cama. Esta visita é diferente, Jaime. Não é como as outras?

Acende o candeeiro antigo, de latão, outrora um fogareiro a petróleo. Na mesa repousam dois volumes sobre Vermeer, um de Ticiano e um cinzeiro de cristal cortado.

— Porque perguntas? Regresso sempre que a tua irmã me ordena. Desta vez, enviou-me com uma missão. Disseste-lhe que ainda não cumpriste aquilo que prometeste.

Sandra solta uma gargalhada nervosa.

— Os jornais dariam uma fortuna por esta história. Imaginas?... Mulher confinada, à beira da loucura, tem conversas íntimas com um fantasma. Mas a tempestade ainda vai demorar. Tens tempo de sobra para te explicares.

— Não imaginas o bem que me faz falar contigo. Quando morri, pensei que estivesse a enlouquecer. Os primeiros momentos serviram para romper um denso nevoeiro. Lembro-me vagamente da cara redonda do bombeiro que conduzia a ambulância. Da médica, jovem, assustada, que espreitava pela janela do veículo. Tinha a testa franzida e a voz aos gritos para o condutor, mandando acelerar. Ela não percebeu que eu já tinha partido. A alma, sabes, parte em silêncio. E a verdade, Sandra, é que a morte como a conhecemos… é uma ilusão.

Sandra estremece. O corpo contrai-se, as pernas sobem instintivamente para junto do peito.

— Como sabes disso?

— Tenho novidades para ti.

A voz rouca de Jaime ganha peso. Aproxima-se. Com a ponta dos dedos toca-lhe levemente no braço.

— Estás gelada.

Sandra fecha os olhos. O seu rosto altera-se numa mistura de susto e reconhecimento. Ficam ambos calados, mergulhados num pesado silêncio.

— A Pandemia desfigurou os dias, Jaime. Tenho medo de enlouquecer. O confinamento já não é só físico. Passo horas a cumprir tarefas que não me interessam, diante de ecrãs, fingindo uma normalidade que não reconheço. Tu, pelo menos, sabes quanto tempo isto ainda vai durar?

— Talvez mais vinte mil dias. Ou trezentos. Quem sabe?

— Não brinques comigo. Não respondas com a primeira tolice que te vem à cabeça.

— Mas onde estarias melhor, senão aqui? Eu posso ser a tua companhia. Enquanto durar a tempestade. E, pelo que vejo lá fora, esta vai durar muito.

Sandra ouve-o, mas não consegue ver-lhe bem o rosto. Levanta-se e escolhe um CD antigo. Coloca-o na aparelhagem. Soam os primeiros acordes de Dark Side of the Moon.

— Comprei este álbum em Portobello Road, há um ano. Carnaval em Londres. O vírus já andava por Itália... Jaime, tu não imaginas o que eu daria para poder voltar lá agora. Ou ir para qualquer outro lugar. Sumir, só isso.

— Talvez amanhã. Talvez ainda esta noite. É só o que eu precisava saber. Vou contigo. Viajarás comigo, sentindo apenas a minha presença invisível. Por uns dias, Sandra, vou fazer-te esquecer os efeitos malditos desta interminável Pandemia.

Uma vibração subtil percorre-lhe o corpo. Uma leve excitação que começa nos mamilos e se espalha até à pele. Um rubor desperta-lhe o rosto. Cerra os olhos sob os sons hipnóticos da música.

Nesse instante compreende. A morte não existe. Essa era a verdade que procurava. Isso… e o calor que regressava, como um velho amante, à sua pele.

 

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