16 - O ELEVADOR DE VERMEER
Deitada na cama, Sandra faz um
esforço enorme para se levantar. Desde as quatro da madrugada que não conseguia
pregar olho por causa de um sono agitado que tivera, e, após meia dúzia de
tentativas frustradas de adormecer, acabara por desistir. O vírus da dolência
instalara-se nela sem clemência, e a vontade de se levantar era nula.
— Devo estar com umas olheiras
daquelas... — desabafa com voz agastada.
A Pandemia tornava os gestos mais
vagarosos, o pensamento arrastava-se e as ideias pesavam, custavam a sair. O
trabalho avançava com grande dificuldade, e já nem os passeios de bicicleta lhe
sabiam ao mesmo.
— Velha rabugenta! Sinto que me estou a tornar numa velha rabugenta,
Firmina, daquelas que “rosnam” para si próprias, sempre de mal com a vida...
Podias vir ajudar-me a sair da cama? Empurra-me daqui para fora, gata maluca,
socorre-me, afasta-me deste vale de lençóis...
A felina salta da cama para o tapete
e transpõe em silêncio o espaço até ao corredor. Espreguiça-se languidamente
antes de abandonar a dona à sua sorte. Os feixes de luz que se projetam nas
paredes revelam que o dia lá fora acordara bem mais agradável do que os
anteriores, sobretudo os últimos, que tinham sido particularmente tristonhos.
— És uma ingrata, Firmina, és uma gata muito, muito má! — reclama Sandra, arrastando-se para
fora da cama. O pijama ganhou o peso de uma cota de malha. Avança lentamente
até ao centro do quarto com os músculos das pernas ainda entorpecidos.
Estica-se em diferentes posições, num ritual com matizes espirituais, a fim de
alongar os membros e o corpo de tez flamenga.
Dois elementos do pesadelo daquela
madrugada, muito poderosos e expressivos, vêm sobressaltá-la e levam a que
interrompa os movimentos. Uma mulher idosa que envergava roupas iguais às da
sua irmã Helena e a porta de um elevador instalado num vão entre os troncos de
duas árvores.
Sandra ergue-se e dirige-se ao quarto
de banho, iluminado por uma luz dourada, agora transformado numa cabine de
elevador. Lá dentro, à esquerda, junto a uma janela aberta, encontra-se a
mulher de pé, com os olhos pousados numa carta. Em frente à janela, sobre uma
mesa com toalha de tons quentes, repousa uma taça de cerâmica com frutos
variados. À direita, de um varão de argolas preso no alto do elevador, desce um
imenso pano ocre, como uma cortina de boca de cena entreaberta. Nesse espaço
exíguo, onde a beleza quase ilógica da composição se assemelha a uma pintura de
Vermeer, foi ainda colocado, no canto esquerdo, um elegante cadeirão.
— Com que propósito continua este sonho a atormentar-me? Que verdades
sobre a natureza do tempo e do espaço tem ainda para me desvendar? A Pandemia
já me conseguiu alterar o juízo... — desabafa Sandra.
— Entre e feche a porta! — ordena a anciã misteriosa, sem
levantar os olhos da carta. — Escolha um dos pisos e carregue no botão
para seguirmos viagem.
É segunda-feira. Sandra tem de
cumprir as suas obrigações e permanecer ao computador o dia inteiro. Nem tivera
tempo de se arranjar ou de tomar café; ainda o dia mal começara, e já a cabeça
lhe desenhava fantasias com traços inequívocos de realidade. Tudo lhe parece
normal enquanto examina ao pormenor a elegância dos algarismos desenhados nos
botões do elevador.
— Aí desse lado da mesa, por debaixo da dobra da toalha,
encontrará uma pequena caixa com biscoitos. Antes de premir o botão da sua
escolha, coma um, coma todos se assim entender, e também pode trincar um
pêssego ou uma maçã. Mas despache-se, não nos podemos dar ao luxo de que mais
alguém tente entrar neste elevador. Só posso receber um visitante por viagem.
Sandra utiliza uma mão para abrir a
caixa de biscoitos enquanto a outra leva à boca uma sumarenta maçã vermelha.
— Experimente os biscoitos! — insiste a velha senhora sem se
mexer. — Verá que nunca provou nada tão delicioso. A minha criada é uma
pasteleira de mão cheia, e em doçaria não existe quem lhe faça frente. Já se
decidiu por algum piso? Agora tem de carregar no botão, não podemos perder mais
tempo.
Com a mão sobre a delicada medalha
dourada que lhe adorna o pescoço, Sandra prime o botão do décimo segundo piso.
— Diga-me, senhora... a minha irmã tem alguma responsabilidade nesta
sua visita? Espero que compreenda a minha ansiedade. Não devo excluir nenhuma
hipótese, mas... na minha opinião, acho que foi Helena quem a enviou.
Os olhos de Sandra seguem os desenhos
dos algarismos que se iluminam a cada piso. Começa a ter dificuldade em
respirar. Quanto mais sobe, mais ofegante se torna a sua respiração. Nenhum
momento da sua vida lhe parecera mais real do que aquele.
— Não se preocupe, minha querida. Imagine que está a mergulhar em
apneia nas límpidas águas do seu rio. Os pulmões já estão habituados. Está tudo
bem?
— Sim... bastante melhor. — responde Sandra, aliviada.
O elevador chega ao décimo segundo
piso, mas não se detém. Continua a subir, imparável, rumo a andares
inexistentes. A luminosidade dourada dá lugar a um tom azulado. Sandra desejara
que Jaime a visitasse nessa noite, mas ele não veio. Tentou pensar menos nele,
distrair-se, e quase conseguiu. Concentrou-se na Gnossienne de Erik Satie,
que colocou a tocar baixinho no telemóvel. Era um truque quase infalível. A
melodia ajudava-a, como a Rêverie de Debussy.
Mas agora, o décimo segundo andar é
ultrapassado. Como? Era o último número nos botões do painel. A anciã permanece
imóvel. Os mostradores giram com rapidez vertiginosa. Onde antes era sete,
lê-se cinquenta e dois. O nono piso torna-se o octogésimo quarto.
A mulher começa então a ler a carta
em voz alta, enquanto o elevador desacelera ligeiramente:
— Mana, decidi escrever-te esta carta
porque tenho receio que pares de lutar. Ainda é cedo para confessares ao Jaime
os teus problemas. Uma mulher solteira é quase sempre mais solicitada. Parecias
tão triste da última vez em que te vi, e não podia ser apenas cansaço. Mentirás
se o afirmares. Para ser sincera, passei mais de quatro décadas sem pensar em
ti. Estava tão absorta na minha própria tristeza, que não conseguia pensar em
mais nada. Depois, enquanto me afligia com a possibilidade de me afogar em
areias movediças, comecei a relembrar as nossas brincadeiras. Desde que a tua
mãe me largou neste bosque inóspito, comecei a preocupar-me com a eventualidade
das memórias se apagarem. Partiu muito satisfeita depois de me abandonar.
Permaneci aqui, à espera de um milagre que tardava em chegar. Faziam-me falta
as nossas conversas, que me forcei a reconstruir. Dei o meu melhor para não as
esquecer... mas cedo perdi o compasso das nossas melodias. Ao fim do primeiro
ano, já não era mais a tua irmã Helena neste outro país. Percorri o bosque com os
olhos para me certificar de que ninguém me via. Baixei a minha cabeça de boneca
maravilhosa e chorei. Percebi que ias crescer... e depressa deixarias de ter
vontade de me procurar.
O elevador atinge o centésimo
vigésimo andar.
— Queres falar com a tua irmã
pelo telefone de emergência? — pergunta a velha senhora, com voz mais
aguda.
Sandra não responde. Não consegue.
Falta-lhe o fôlego.
— Sinto muito, mas temos de iniciar a descida. Já devíamos ter
descido antes de alcançarmos este último piso. Vou reportar a situação à
administração do condomínio.
— Isso não me importa! Nada do que aqui acontece tem a ver com a
realidade. —
afirma Sandra, encostando-se à porta do elevador. — Isto só significa que estou cansada do confinamento e desta Pandemia.
A cabeça prega-me partidas... imagino demais.
— Teve um sonho igual a este
na noite passada, ou é apenas a continuação do mesmo?
Sandra não gosta da pergunta. Olha
para as mãos que esfrega e aperta. Quer acreditar em Helena, quer acreditar que
ela ainda existe. E quer muito que o “seu” fantasma a visite, de preferência em
noites mais solitárias, que são quase todas.
— A senhora não entende. Não há nenhuma irmã-boneca morta a
assombrar-me. Quem me assombra é o fantasma de Jaime. Os meus pais mortos
jamais se dariam ao trabalho de voltar do outro lado para o fazer. E se for
mesmo necessário enterrar a minha irmã-boneca, isso significa que os meus
sonhos não são absurdos.
Lembra-se de estar sentada no chão, a
brincar com Helena e uma pequena cozinha feita de cartão. Nunca pensara ter de
cavar um túmulo para a irmã-boneca depois de enterrar os pais. Sentia-se uma
idiota por pensar assim, mas nem sempre se escolhem os pensamentos.
— Acho que vai conseguir encontrar o caminho de regresso a casa. — anuncia a velha, virando finalmente
o rosto esquálido para Sandra.
O elevador estremece, faz um ruído
seco e imobiliza-se no rés-do-chão. A porta abre-se no exato instante em que um
som metálico de correntes invade o cubículo.
— Sai! SAI DAQUI DEPRESSA!
— diz a anciã, empurrando Sandra para fora. Nesse instante, o elevador
desaparece debaixo do chão, vertiginosamente.
A vida é feita de imprevistos. E os
imprevistos, são coisas muito sérias, capazes de
deixar em franja os nervos de qualquer um.
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