17 - CANCIONEIRO DE DOR E CORAGEM
Não existe perdão para mulheres resolutas
que tomam conta do seu próprio destino. A sociedade, polida na superfície mas
profundamente arcaica, continua a castigar em silêncio as que ousam sair do
papel de espectadoras da sua própria vida. Se fosse um homem divorciado,
diziam-lhe, a narrativa seria outra. Mas para ela, Sandra, mulher, ainda nova e
arrojada, o fardo era sempre maior. Decidiu pelo fim, lançou um fósforo aceso
sobre uma ponte encharcada em álcool. Tudo foi repentino, inevitável e
definitivo.
Foi apenas uma questão de tempo até
que começasse a combater o passado. A família, sob o peso do julgamento,
olhou-a como cúmplice da degradação do casamento, como se o silêncio diante da
violência emocional a tornasse culpada. Carlos distanciara-se, tornara-se
ríspido, quase ausente. Começou a falar alto, a encostar as palavras que mais
não eram do que pedras arremessadas contra vidros. Já não respondia, só
impunha. Ela, à deriva num quotidiano cada vez mais espesso, passou a temê-lo.
Quando se deu conta, a própria casa
já tinha deixado de ser casa.
A coragem não chega de rompante, é um
trabalho lento, que se vai acumulando por baixo da pele até empurrar de dentro
para fora.
Um dia, Sandra ergueu-se. Com a
frieza de um céu escandinavo, falou. Disse-lhe tudo que a alma carregava. As
palavras guardadas há meses, talvez anos. Enquanto falava, lutava contra as
lágrimas que insistiam em traí-la, limpando-as como podia, as pernas presas ao
chão, a cabeça em fogo, o sol a queimá-la por dentro. O sangue pulsava como um
tambor tribal, repetindo-lhe:
— Espero que saibas bem aquilo que
estás a fazer. Espero que saibas mesmo muito bem aquilo que estás a fazer.
O céu adquiriu uma cor improvável, e iluminou
a noite como um presságio. De súbito, tudo mergulhou em sombras. O odor húmido
a musgo invadiu os espaços. A casa transformara-se num lugar estranho, e quando
os pés de Sandra deixaram o chão, percebeu que ele, Carlos, já lá não estava.
Partira em silêncio, como tantas vezes desejara, mas sem lhe dar a dignidade da
última palavra.
Tentou manter o controlo, mas
tropeçou. Caiu. E o chão que parecia seguro revelou-se um charco traiçoeiro,
húmido e traiçoeiro. Afundava-se. Em areias movediças. A angústia apertava-lhe
os brônquios, a garganta fechava-se em espasmos de tosse e pânico.
Foi então que a ouviu.
— Deixa de ser tontinha, rapariga! Tu
às vezes pareces mesmo a mais tonta das meninas.
Era a voz da avó Gertrudes. Nítida,
como se falasse do corredor. Conselhos antigos, herdados como receitas de
sobrevivência. A mente de Sandra agarrou-se àquela voz como se fosse um galho na
correnteza:
— Pensa. Acalma-te e pensa bem
naquilo que tens para fazer. A autocomiseração nunca fez bem a ninguém. Deixa
de te sentires culpada. Estás gelada. Mas vais voltar a aquecer.
Ela obedeceu. Manteve-se imóvel. E aos poucos,
sentiu o sangue a circular de novo. Os lóbulos a arder, os membros a aquecer.
Chorou. Não sabia se de tristeza, de raiva ou de gratidão. Chorou porque se
reconhecia finalmente como pessoa corajosa.
Teve coragem para sair.
Coragem para falar.
Coragem para dizer basta.
Tinha-se habituado a menosprezar a sua bravura. Um
dia assim não se podia recusar, era demasiado importante para terminar com um
sentimento de frustração ou de derrota.
Foi então que Helena se aproximou.
A sua irmã-boneca ajoelhou-se a seu
lado. Era tão real como os sonhos e os fantasmas de que é feita a infância. Os
olhos, grandes e brilhantes, transbordavam de pena. E num gesto maternal, decidiu
tranquilizá-la. Começou a cantar velhas canções de embalar:
“Mama, mama, meu menino
Este leito é de pesar:
Amanhã por esta hora
Já m’ estão a degolar...
Minha mãe é pobrezinha,
Não
tem nada que me dar;
Peço-lhe
pão, dá-me beijos
Com
vontade de Chorar
Dorme,
dorme, meu menino
Que
a tua mãe tem que fazer,
Ela
tem muito trabalho
E
tem pouco que comer”
A voz de Helena era um murmúrio que
ressoava nas paredes da memória.
Durante o sono, uma inusitada
corrente de ar redesenhou a lembrança deste dia na garganta de Sandra.
Acordou com um acesso de tosse seco,
árido. E Jaime estava ali.
Como um sussurro.
Entrou no quarto sem ruído, as mãos
frias a pousarem-lhe na testa com delicadeza. Quando ela pensa nele, pensa em
mãos. Mãos doces, ternas, sossegadas. Mãos que não ferem. Mãos que não pedem
explicações. Mãos que não culpam. Mãos de alívio e satisfação.
— A Miriam está mortinha por te
conhecer, Jaime. Mal disfarçou a curiosidade quando lhe falei de ti. Já te
disse que ela é a minha melhor amiga?
Jaime escutou-a sem responder.
Deixou-se ficar ali, entre a vigília e o sono, entre o fogo e a lama, entre o
fim e o recomeço.
A mente de Sandra viajava nas asas
daquele descanso, os músculos cediam ao repouso, e o coração... O coração,
esse, começava lentamente a desenterrar-se.
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