18 - OS DIAS EM SUSPENSO

 

É impossível não sentir estranheza nestes dias em que a medida do tempo se alterou. A vizinha de Sandra teve Covid e acabou por ser internada. Passou mais de uma semana no hospital, mas teve a sorte de regressar a casa sem necessidade de passar pelos cuidados intensivos. A notícia chegou através da janela, pela voz embargada da irmã.

— Ela sentiu-se mal depois de entrar no carro, tinha dificuldade em respirar. A febre nem era muito alta, 37 e meio, mas deixou de cheirar e saborear. Começaram a aparecer-lhe marcas vermelhas na pele, principalmente na cara. Foi então que decidiu ligar para o centro de saúde. Fizeram-lhe o teste e ela já não voltou — disse, com o olhar perdido no vago. — O pior foi não a podermos visitar. Os miúdos ficaram em pânico, sem saber o que pensar. Felizmente, o teste deu negativo para todos nós. Têm sido uns dias de inferno, mas tenho tanto orgulho nela... nunca deixou de acreditar que ia vencer.

Apesar do vírus continuar a agir de forma traiçoeira, há mais pessoas nas ruas. Os passos tornaram-se visíveis nos passeios desde que anunciaram as medidas de desconfinamento. A população parece respirar um alívio contido. O fim-de-semana quase a lembrar uma versão antiga da normalidade.

Mas os dias repetem-se. As semanas repetem-se. O isolamento forçado sugou a diversidade das conversas, que agora se limitam a desabafos sobre as atualizações pandémicas. Sandra, como muitos, teme pela sua sanidade. Cada avanço é um tropeço, cada alívio uma recaída. Vive acossada pelas estatísticas, que se tornaram diariamente esta espécie de olhos vigilantes e impiedosos a segui-la por toda a casa.

Olha para a gata Firmina, a sua única companhia constante.

— E tu, que contributo tens dado? Vá, diz-me lá... Só sabes sujar e desarrumar. Já pensaste bem o que seria de ti se eu ficasse doente? Sou a maior tonta desta cidade, pois é apenas contigo que tenho conversado todos os dias. De manhã arrasto-me da cama, à noite volto a deitar-me com a mesma roupa. Até as meias mantenho, de tanto frio que está. E tu aí, impassível. A Miriam não atende, o Jaime desapareceu. Apetece-me gritar. É só isso. Talvez se gritasse da varanda ficasse melhor...

A televisão continua ao fundo com a mesma lenga-lenga. Pandemia, restrições, novos casos, projeções. A jornalista repete-se como um disco riscado. As aulas recomeçam amanhã para os mais novos, os adultos podem voltar aos cabeleireiros, aos cafés, aos bancos de jardim.

Sandra sente-se exausta. Recusa-se a adoecer, mas está cansada de resistir. Deita-se no sofá, cobre-se com uma manta de flanela e chora em silêncio. Agarra-se à manta em desespero. Cobre a cabeça, deseja desaparecer.

Não quer morrer.

A vizinha, mais nova do que ela, passou um mau bocado no hospital.

As palavras já não saem. É mais fácil imaginá-las do que pronunciá-las.

Os lábios ficam vermelhos e salgados. A boca sabe a sangue.

Começa a interrogar-se sobre quem se tornou. Já não reconhece a mulher simpática, cuidadosa com a casa, meiga com a gata. A Pandemia destruiu-lhe a paciência, a estrutura, os gestos de ternura. Agora fala sozinha, em circuito fechado. Até os pesadelos lhe parecem visitas bem-vindas.

Adormece.

Sonha novamente com a sua irmã-boneca.

Estão sentadas à mesa de um café, iluminado por um pôr-do-sol encenado. Helena pede dois donuts e um sumo de laranja natural. Sandra escolhe uma torrada e um chá verde que lhe é servido escuro, denso como xarope.

As vidraças do café começam a rachar. Um cheiro a óleo rançoso, adocicado, invade o espaço. Uma pomada quente e castanha escorre-lhe pelos braços, pernas, rosto e cabelo. Helena bebe o sumo por uma palhinha finíssima, e sorri-lhe com malícia:

— Está na altura de eu deixar de ser uma boneca, mana. Quero ser mulher. Quero ter cheiro de mulher. Quero casar-me. Tu, que já foste casada, diz-me se vês alguém por aqui que me queira para companheira de vida?

Aponta um homem de braços fortes e mãos calejadas.

— Repara bem nele... cheira a pinheiro e limão, deve ser do creme de cabelo. Não sorri muito. Gostava de saber o som da sua voz. Cuidado com a janela, Sandra. Está rachada, prestes a partir-se. Ficaste tão calada de repente... O chá está horrível, mas não é novidade. Sabias que eu desejava ser mulher, e hoje estou demasiado feliz para desistir. Sempre te estendi a mão na tua infância. Agora é a tua vez de me estenderes a tua. Enterra-me no lugar consagrado. Liberta-me. Deixa-me descobrir e espantar-me com todos os meus lugares de prazer. Como foi possível teres demorado tanto tempo a vires ter comigo ao nosso café?


Comentários