21 - A TERRA QUE ABRAÇA
Sandra colocara um pequeno caderno
junto à cama. Acordava com fragmentos, restos de sonhos que não queria perder.
Escrevia-os sem filtro. Começara por palavras soltas, depois resumos breves, e
agora contos. O que antes parecia uma tentativa de colar tempos diferentes como
passado, presente e futuro, começava agora a ganhar outra forma. Algo mais
literário, mais inteiro. Às vezes, deixava-se embalar na ideia de que aquele
caderno era, talvez, o princípio de um romance. E ela, não mais apenas corpo
dentro de uma vida desfiada, surgia como personagem. Narradora e protagonista
principal. Escrevia os nomes com cuidado. Sem trocar letras, sem disfarçar
identidades. Gostava da nitidez de chamar as coisas pelo que eram. E nesta
madrugada, entre o som raso do vento e o raspar da caneta no papel, escreveu:
“No bosque, entre pinheiros carbonizados e ecos de uma infância que se
recusava a morrer, Sandra cavava. Não com pressa, mas com gestos muito lentos
de quem devolve algo sagrado ao seu lugar. O solo cedia com ternura, ainda
húmido das últimas chuvas. Helena estava desfeita. Restos de tecido queimado,
tufos de cabelos, porcelana partida. Pedaços dispersos da irmã-boneca. Tudo foi
colocado no ventre da terra com um cuidado que lembrava amor. Junto a ela,
Sandra depositou um pequeno botão azul do casaco da infância e um lenço branco
bordado pela avó Gertrudes.
Nem
o céu chorava. Nem o vento se movia. O silêncio
era tão poderoso, que tudo o
que era natural se conteve. O silêncio não era ausência, era reverência. Sandra ficou a observar de perto, depois de longe, com
o espanto de quem contempla o fim de uma história antiga. Ela desfazia-se
também destas memórias. O que ali deixava não era só uma boneca, mas o pacto
não dito com o passado, com a culpa herdada, com o que lhe coubera sem escolha.
Nem o céu chorou, nem o vento se ergueu. Quando o último punhado de terra
cobriu tudo, houve um som no ar. Um leve estalido, talvez de uma raiz a ceder.
Talvez algo mais. E então viu entre as árvores um vulto pequeno, sem rosto.
Apenas forma. Presença. Estava ali. Parado. Depois, num gesto inesperadamente
leve, correu e desapareceu entre os troncos.
Sandra não teve medo. Não dessa vez. Apenas desejava voltar para casa com
as mãos sujas, os músculos cansados e o corpo leve. Havia nela um cansaço bom,
e na alma um espaço novo.
A floresta voltava, mas agora parecia mais viva. O sonho mudava.
Tornava-se ainda mais lugar, menos metáfora, espaço bem real. Sítio onde o pó
tinha memória, onde os objectos se lembravam das pessoas.
Vagueou entre árvores e raízes até encontrar uma porta de madeira deitada
no chão, quase escondida pela vegetação. Do nada, uma maçaneta de ferro frio
apareceu e estremeceu-lhe nos pés. Era claro que não podia deixar de tentar
abri-la.
Lá dentro, escuridão. Cheiro a verniz velho, mofo, papel húmido. A luz
entrava às riscas pelas ripas de madeira. Desceu lentamente até um
compartimento baixo, quase um ventre.
Remexeu as folhas caídas, o chão. Encontrou uma caixa de latão embrulhada
em tecido. Lá dentro estavam cartas, fotografias. Uma fita azul desbotada, e
uma certidão.
Helena Cerqueira. Nascida a 10 de Junho. Morta a 4 de Março do ano
seguinte.
As letras tremiam-lhe nas mãos. Helena existira. Não era invenção, nem
símbolo. Era gente. Existira. E morrera antes de ter tempo para ser nome em voz
alta.
Sandra não
sabia o que dizer, não sabia o que fazer, o que pensar. Porque há verdades que
não se explicam. Apenas se partilham no silêncio.
Entre os papéis, uma carta com letra firme da avó Gertrudes:
“Sei que a perdeste, minha querida. Mas jamais te deixes perder por entre
frases não ditas.”
As lágrimas não vieram ali. Vieram depois. Com o ranger dos degraus sob
os pés. Firmina esperava por ela, empoleirada no braço do pequeno sofá do
quarto, como se tudo isto já soubesse.”
Estes sonhos, esta floresta, surgem como lugares fora
do tempo onde o pó tem memória, e onde os objectos se lembram de nós.
Sandra tinha voltado a sonhar com Helena, mas aquele
dia nasceu diferente, com azuis mais claros. Ela acordou sem pressa. Deixou-se
ficar deitada, a chorar baixinho, e a ouvir o ruído do mundo lá fora.
Firmina decidiu saltar para a cama e roçou-se nas suas
pernas. Parecia querer dizer-lhe que a vida continua.
Levantou-se. Fez café. O cheiro
encheu a cozinha com um tipo estranho de paz. Na sala, sentou-se no chão. O
corpo, pela primeira vez em dias, não lhe doía. Teve vontade de praticar yoga.
Sentou-se com a caneca entre as mãos. Fechou os olhos. Ouvia os sons da rua, os
sons da casa, os sons de dentro.
A gata entendia e sorria. Ou parecia
sorrir.
Sandra não disse nada. Não precisava.
O sol aqueceu-lhe os pés. Sorriu, sem
se dar conta. Um riso breve escapou-lhe. Quase alegria. Quase espanto.
Por um instante sentiu que tudo, até
as ausências, fazia parte do que a construía.
Como se a sua vida recomeçasse.
Mas agora por dentro.
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