22 - UMA PORTA ENTREABERTA


Nesse dia, Sandra acordou cedo. Acordou com sede. Bebeu água. Deixou-se ficar de pé, de frente para a janela. O céu ainda escuro. Um ou dois pássaros já testavam sons no ar.

Decidiu escrever, não no caderno dos sonhos, mas no computador. Abriu um documento novo. Intitulou-o: "Coisas que ficaram". As palavras fluíam, mas não doíam. Eram corpo, eram solo. Escreveu durante horas. Perdeu a noção do tempo. Quando se deu conta, o sol já espreitava e Firmina dormia no tapete. Ela deitou-se ao seu lado. Esticou-se no chão, sem almofada. Estava bem ali.

Fez-se silêncio outra vez. Era um silêncio onde podia, finalmente, estar.

Pensou que aquela era uma bela manhã para remexer gavetas e limpar objetos em que não tocava há anos. Começou a separar os papéis que já não queria, as fotografias repetidas e roupas de quando ainda tentava caber noutra vida. Percebeu que o armário da entrada estava cheio de coisas herdadas que nem reconhecia. De outras, lembrava-se bem, como o casaco de lã que a mãe lhe dera e ela nunca usara.

Espalhou na mesa um monte de papéis. Voltou a abrir aquela velha caixa de latão e deu por si a ler algumas cartas. Umas eram da avó Gertrudes. Outras, da mãe. Nunca as tinham enviado. Tinham-nas escrito e guardado como recados em garrafas sem mar.

À tarde, saiu. Caminhou até ao mercado, comprou frutas, vinho e pão.

O telemóvel tocou. Era Miriam. Atendeu.

— Estava a pensar em ti — disse Miriam, antes que pudesse dizer olá. — Sonhei contigo.

Sandra riu-se baixinho.

— Estavas a pensar em mim? Queres que eu vá aí a tua casa, não é? Se quiseres, posso agora mesmo dar aí um saltinho.

Miriam acedeu com eloquência.

— Também estavas a pensar em mim? Também sonhaste comigo?

— Não. Desta vez os sonhos foram diferentes. Se desejares, posso contar-te o quanto me têm ajudado. Comecei a registar o que neles me acontece, e nem sabes o bem que isso me faz.

Miriam escutou-a com atenção, e passado um instante, disse:

— Sabes... tive medo de enlouquecer. Durante o confinamento falava sozinha, falava com as paredes, com os copos. E chorava por coisas sem importância nenhuma.

— Como o quê?

— Como tocar. Como encostar o rosto ao pescoço de alguém. Como rir num lugar cheio. Como sentar-me ao lado de alguém sem pensar em contágio. Como saber que alguém me desejava perto.

— Achas que a Covid nos mudou?

— Não. Acho que não. Mudámos, mas não foi só por causa da Pandemia. Eu acho que voltei a mim, mas voltei diferente. Estou assim… assim, uma pessoa mais funda. Talvez até mais silenciosa.

Uma mulher tossiu ao passar perto de Sandra, e depois riu-se sozinha, como se se perdoasse.

— E tu? — perguntou Miriam. — O que mais te custou?

Sandra pensou. Abriu os lábios. Fechou-os, e disse:

— Não saber se alguém se ia lembrar de mim depois de tudo isto. Se, num mundo fechado, com medo, alguém ainda saberia que eu existia. E não poder tocar em ninguém... quando eu própria me começava a esquecer que tinha corpo.

Miriam escutava-a, sentada na cadeira da varanda. O sol fazia-lhe cócegas nos ombros.

— Eu lembrava-me sempre de ti, rapariga. Às vezes pensava em ti. Dizias que precisavas de mim, e eu preciso de, e precisamos tanto uma da outra. Em algum lado. Ainda que quietas, devíamos ter passado muito mais tempo juntas na malvada Pandemia.

— Eu pensava tanto em ti, que cheguei a ter vergonha. Achava que não tinha o direito de ser assim. Talvez por isso ficámos distantes, ou assim eu o imaginei. Parecíamos duas estranhas. Eu já não sabia se era tua amiga, ou se era só a mente a castigar-me com a tua ausência.

— Tu foste sempre um eco, Sandra. Foste o meu silêncio de companhia. E agora estás de novo aqui. Anda, não demores mais tempo, despacha-te.

Sandra sorriu, com um som frágil e bonito.

— Tenho saudades de tocar-te.

Miriam respondeu:

— Queres?

— Quero.

— Hoje. Jantar em minha casa. Só nós. Não como antes. Como agora.

— Acabei de comprar figos. E vinho. E pão. Parecia que estavas a adivinhar. Podes começar a pôr aquela música, e veste aquele vestido que tu sabes.

— E tu, traz o teu riso. Aquele riso antes do medo.

— E se o medo voltar?

— Dançamos com ele.

As duas riram. Primeiro uma. Depois a outra. Depois juntas. E o riso ficou ali mais tempo do que qualquer palavra.

— Às vezes penso que nos esquecemos de como é tão bom amar. Talvez porque nos ensinaram que o amor era sempre outra coisa qualquer.

— E se não for?

— Se não for, então podemos dizer que chegámos. Que cruzámos. Que escolhemos.

Sandra subiu as escadas e bateu à porta. Miriam abriu-a. As duas seguiram de mãos dadas até à varanda e ficaram a ver o sol descer no céu. As mãos decidiram encontrar as pernas uma da outra, mas sem nada apressar. Cada gesto tornava-se depois mais demorado. Como se aquela conversa anterior sempre tivesse sido a sua casa. E nenhuma tivesse pressa de sair.

Ali, naquele instante, entre ternuras, beijos, figos, vinho, boa música e muitas carícias, entre mais beijos e mais amor, escreveram, sem saber, mais um parágrafo de uma história que não exigia explicação. Apenas continuidade.

Miriam sentiu a ausência de Sandra como quem sente um órgão a falhar. Agora lia nos seus olhos mensagens antigas. A voz da amiga amante, hoje ali, a ecoar em todas as músicas que escutavam, e em todas as frases interrompidas. Tentava dizer-lhe, aos pedacinhos, tudo aquilo que a Pandemia se apressou a adiar ou apagar. Sentia que tudo o que lhe dissesse seria sempre muito aquém do que sentia.

O chão recebia os corpos como vestígios de um altar. Miriam lia nas costas de Sandra frases que jamais conseguirá esquecer:

O amor é um animal que respira melhor no silêncio.”,

O corpo guarda o que não ousámos contar.”

Tu foste a minha iniciação.”

Desejou não mais fechar aquele livro. Procurou na pele inteira daquele corpo-livro a voz escondida da amiga, e lembrou-se do dia mais negro da Pandemia, em que ela lhe ligou e disse: — Se alguma vez desaparecer, não me procures. Mas também não me esqueças.

Miriam e Sandra nunca foram obedientes. Sabiam que caminhos percorrer, pois possuíam mapas vivos a remexer dentro delas.

— Miriam, não quero mais ser aquela outra personagem que me habituei a conhecer. Quando estamos juntas, não sinto necessidade dela. E também não quero que venhas atrás de mim. Mas se vieres, se por qualquer razão o desejares fazer, gostaria que dançássemos a mesma valsa de hoje.


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