23 - SEGREDOS DO SILÊNCIO
A bonança que se instalou entre os avós de Sandra era
profunda. Outras histórias esperavam, pacientemente, pela sua vez de se
desdobrarem. Histórias tecidas da terra e do vento, de mãos envelhecidas pelo
tempo e de corações que conheciam bem a velha linguagem daquilo que não se
dizia. Eram histórias que Gertrudes guardava na própria textura da pele, no
brilho dos olhos, na forma como os seus dedos faziam tranças à neta.
Muito antes de Sandra existir, Gertrudes já trazia consigo
para dentro de casa esse caso supostamente invisível. Fazia de conta que não se
importava, mas nisso era má atriz. Era o cheiro da vida, das promessas, da
teimosia do marido, e das raízes que “a outra” lhe tentava arrancar mas que teimavam
em fincar-se no solo. O peso da consciência trabalhava em Faustino como
consequência persistente do que lhe era essencial. Naquele dia, ele estava
sentado no banco de madeira à porta da casa a afiar um pequeno pedaço de pau
com um canivete. Um gesto ritmado, constante, era a forma que encontrava para
acalmar os nervos e que Gertrudes conhecia de cor. Ela observava-o da janela da
cozinha, as mãos mergulhadas na massa do pão. Os ombros largos do marido, a
maneira como ele se curvava naquele ofício inútil, as pausas que praticava, tudo
nele comunicava com ela, em silêncio, de um jeito quase rigoroso que o tempo
lhes ensinara.
A chuva parara há pouco, deixando um rasto de brilho
nas folhas das árvores e um murmúrio distante no mar que se escutava lá em
baixo, já não preguiçoso. Era mais um segredo que a paisagem guardava.
Gertrudes sentia o frio a subir-lhe pelos pés, mas não se mexia. Havia uma certa
quietude naquele momento que ela apreciava mais do que todas as festas.
Faustino levantou a cabeça, os olhos fixos no horizonte onde o céu começava a
abrir-se em tons de cinzento e rosa. Uma promessa tímida de sol. Ele não disse
nada, mas Gertrudes sabia que ele via o mesmo que ela.
Lembrou-se então de quando era menina. O pai levara-a
ao pinhal para lhe ensinar a escutar o vento a sussurrar entre pinheiros, Dizia
que era a forma das árvores contarem histórias de tempos antigos, e de almas
que nunca partiam de verdade, apenas mudavam de lugar. —
"A
morte", — dissera ele, com a voz grave mas sem qualquer tom de
medo —
"é só
uma porta entreaberta, menina. E há quem saiba espreitar por ela."
Gertrudes nunca esquecera aquelas palavras. Tinham-se
entranhado nela como a resina dos pinheiros, e o cheiro da terra molhada. Tinham-se
tornado parte da sua própria essência.
Faustino tinha alma de artista. Via o mundo de uma
forma que poucos compreendiam. Para ele, a vida era um palco, e cada gesto,
cada silêncio, fazia parte de uma peça maior. Gertrudes era a plateia mais
atenta, a única capaz de ler nas entrelinhas dos seus monólogos interiores. Sabia
que a sua paixão pelo teatro, e por Genoveva, não era uma traição ao amor que ele
sentia por ela, mas uma busca por liberdade. Liberdade que a vida real sempre
lhe negara.
Mas ela também tinha os seus próprios palcos, os seus
segredos, as suas portas entreabertas. Apreciava os passeios solitários pela
serra, onde visitava o pinheiro mais antigo do bosque. Não era um pinheiro
qualquer. Era aquele, o mais alto do pinhal, com o tronco retorcido como uma
prece antiga, onde os pássaros faziam ninhos e as memórias se aninhavam,
sussurrando histórias ao vento. Depois veio o incêndio, um dos mais
devastadores que assolaram a serra. Deixou um rasto de cinzas e desolação.
Gertrudes, com as mãos sujas de fuligem, olhou para o seu pinheiro e viu, com
espanto, que se mantivera de pé. Um autêntico milagre salvou-o das chamas, como
um farol de esperança no meio da devastação.
— Há coisas difíceis de explicar! Este
meu pinheiro velho, nem o fogo o levou. Tem raízes que se agarram mais fundo do
que a destruição. — Entendeu aquele absurdo como uma
espécie de milagre. Uma promessa, não apenas para si, mas para todos os que
viriam depois. Para os que se perderiam no ruído do mundo. Para os que
esqueceriam o cheiro da terra, o sussurro dos pinheiros. E ali, sob a sombra da
árvore sobrevivente, entre o cheiro a fumo e a promessa de um novo verde,
Gertrudes compreendeu tudo para além do óbvio, e muito para além das palavras. Compreendeu
também a dor escondida nos gestos da filha Albertina. Uma raiva surda que se
transformava em ciúmes, uma inveja imensa que se tornava fogo. E viu como
Sandra crescia perdida entre ruídos e medos. Gertrudes sabia que a sua tarefa
era ser um porto seguro, ser terra firme. Um lugar onde a neta pudesse ser ela
mesma. Sem máscaras. Sem fingimentos.
Até que chegou o dia da sua "Revolução". Pegou
em duas malas e desapareceu. Não foi fuga, foi preservação. Precisava respirar.
Recuperar-se. Encontrar sentido e paz. E, ao fazê-lo, compreendeu Faustino
melhor. A liberdade que ele procurava em Genoveva era a mesma que ela buscava para
si.
Uma liberdade de ser, de sentir. De existir para além
das expectativas e dos julgamentos de todos. Naquele dia em que partiu, a maresia
cheirava a resiliência e renascimento. Mesmo com o mundo inteiro a desabar.
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