24 - SUSSURROS DO MAR

 


A casa da Figueira mal respirava desde a partida de Gertrudes.

Faustino percebia isso de cada vez que caminhava devagar pelas tábuas que gemiam sob os pés. Era como se Gertrudes ainda ali estivesse.

A família reorganizara-se quase sem palavras. Albertina assumira o papel da firmeza, mas essa firmeza era mais uma couraça do que um estado de alma. O silêncio entre ela e Sandra nunca se resolvera. Era feito de perguntas não feitas, de raivas recalcadas e de um amor às avessas que se dizia aos gritos ou nunca se dizia.

Sandra, já adolescente, percebia tudo por entre gestos, pela forma como a mãe batia com a porta do armário, o modo como os olhos se demoravam nas janelas vazias, o copo de vinho à hora errada. E havia o cheiro a terra, que vinha sempre das mãos da mãe, mesmo quando não tocava em flores, mesmo quando não colhia nada.

Certa tarde, Sandra decidiu caminhar até à praia que estava deserta. Sentou-se numa pedra alta, com os cabelos soltos ao vento. As gaivotas lançavam gritos que lhe soavam familiares. Era ali que mais gostava de pensar na avó, as lembranças eram mais lúcidas e quase ganhavam forma. O rosto iluminado pelo salitre e pelo sol baixo, o mesmo lenço de sempre atado à cabeça, e os sapatos negros gastos do tempo em que partira. Sandra fechou os olhos e ouviu a voz da avó.

— Não esperes que te compreendam logo. Nem sempre fui compreendida. Mas havia em mim uma necessidade de partir que era maior do que a vontade de ficar. Não fugi de ninguém, nem por causa de ninguém. Fugi de tudo o que ainda me esperava.

Ao abrir os olhos, tudo permanecia igual ao instante em que os fechou.

Nos dias seguintes, Sandra decidiu fazer o mesmo, quase sempre à mesma hora da tarde. Queria conseguir escutar Gertrudes, queria que ela lhe dissesse os verdadeiros motivos por que deixara a família para trás.

Faustino chegou a casa da filha com a neta pela mão, naquele fim-de-semana de brisa morna. Falou com Albertina, na tentativa de explicar o inexplicável. A filha jamais compreendeu aquela decisão. Sandra entrou e correu até ao quarto onde Helena já não existia. Era difícil entender, ao certo, o que se tinha passado com a avó. Albertina e Faustino permaneceram quietos, junto à porta, mais algum tempo. Os corpos-estátua, parados, pousados, sem explicações plausíveis na cabeça. Nenhum deles alguma vez falou com Sandra acerca do assunto.

Albertina disse ao pai algumas coisas que lhe vieram à cabeça:

— A mãe saiu de casa por causa daquela atriz. É essa a verdade, meu pai?

— Genoveva, … o nome dela é Genoveva. A tua mãe sabia tudo o que se passava. Bastava olhá-la nos olhos, quando vocês iam assistir às estreias. E agora estou a dizer-te que a tua mãe partiu como quem sabe que o mundo é maior. E não sei quando voltará.

Albertina permaneceu calada, a olhar o pai com um porte que não era de repouso.

Nessa noite Faustino foi até ao teatro. Entrou, depois subiu ao palco vazio onde se sentou. Do fundo da sala chegava um cheiro a cigarrilha, e a fumaça desenhava formas aleatórias enquanto subia.

— Ouvi dizer que a tua mulher saiu de casa. Até quando achavas que a novidade ia ficar escondida numa terra como esta?

Genoveva levantou-se da primeira cadeira da última fila da plateia, sem fazer nenhum barulho. Caminhou descalça até ao palco que subiu bem devagar. O seu perfume era doce, era salgado, era fresco.

— Um dia novo hoje se levantou, meu querido, como estas cortinas de palco antigo.

Genoveva sentiu-se leve, como se o mundo de Faustino estivesse, finalmente, a arejar.

Ele estendeu-lhe a mão. Ela aceitou. Os dedos entrelaçaram-se, primeiro em silêncio, depois com uma urgência contida. Ali, no centro do palco nu, os corpos encontraram o gesto antigo do desejo. Não houve promessas. Nem palavras. Apenas o rumor dos tecidos que escorregavam devagar. A madeira velha chiava, cúmplice.

O vestido de Genoveva caiu com delicadeza. Faustino soube, sem esforço, por onde começar a viagem. Tocou-lhe com o cuidado de quem toca em memórias. Ela deixou-se ser lida. No fundo do palco, velhos cenários guardados pareciam observar, imóveis. Uma cidadela antiga, colunas meio rasgadas de cartão-pedra, tecidos e roupas gastas de outras peças. Tudo assistia àquela cena improvisada.

Genoveva virou-se sobre ele com um riso abafado. Os cabelos envolveram-lhe o peito desnudado. Faustino beijou-lhe o pescoço, depois os ombros, depois a curva das costas.

— Tu és o palco — murmurou ele. — E eu, o acto que nunca ensaiámos.

Ficaram ali fora do tempo, a desenhar uma história antiga que passou a existir para sempre naquela noite. Quando finalmente se afastaram, vestiram-se devagar. Sem culpa. Sem pressas.

— Sabes que isto não muda nada — disse ela.

— Mas muda tudo — respondeu ele.

Desceram do palco como se deixassem para trás a pele antiga. E o teatro, escuro, guardião de segredos como sempre soube fazer.

 

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