25 - RUÍNAS ÍNTIMAS


— Tu és o meu agora — disse Sandra a sorrir.

Ali, no aconchego gentil da madrugada, de corpos entrelaçados, Miriam entretinha os dedos nos cabelos de Sandra. Queria somente estar ali, mas os pensamentos fugiam para o passado.

— Sabes o que mais temi durante os dias de confinamento? — perguntou Miriam, com a voz embaciada pela névoa da memória. — Que tudo voltasse ao normal. Aquele normal antigo que me sufocava.

Sandra riu-se baixinho. — Eu temia o mesmo.

— E se esses dias já regressaram? — desafiou Miriam, endireitando-se um pouco para a olhar nos olhos.

— Então ensinamos os novos dias a desaprender esse medo. E nós, reaprenderemos o toque com gestos pequenos. Como este. — beijou-lhe a clavícula, quase em reza.

— Como este. — respondeu Miriam, apertando-a com mais força, como se pudesse ancorá-la no presente.

O dia clareava atrás das cortinas, ainda tímido a romper a noite.

— Estamos a reescrever um novo mapa, Miriam. Um mapa ainda sem bússola.

Miriam aproximou-se e abraçou-a pela cintura.

— Adoro quando dizes essas coisas. E se nos perdermos?

— Então, se nos perdermos, fazemos como hoje. E depois tomamos banho juntas, como fazíamos antigamente. A água a escorrer pelos ombros, pelas costas, pelos segredos todos que acumulámos. Eu aprendi a amar este teu corpo. Tudo em ti é fluxo, é intenção.

— E tu és… minha, a minha melhor amiga — respondeu Miriam.

Era domingo, mas não parecia. Não havia pressa, nem planos, nem relógios. As janelas tinham ficado abertas e deixavam entrar o cheiro da rua molhada.

— Lembras-te de quando até a cidade parecia um corpo febril? — disse Sandra.

— As sirenes, as vidas todas fechadas, os rostos escondidos.

— Lembro-me de contar os dias pelas notícias. De medir o medo pelas estatísticas. E de quase sentir culpa por querer viver — respondeu Miriam.

— E agora? Ainda sentes culpa?

Sandra demorou a responder. Depois, levantou os olhos e sorriu.

— Agora sinto fome. De ti. De mim. Da vida que ainda não vivemos. E isso é bem melhor do que a culpa.

Sandra apoiou a cabeça no colo de Miriam enquanto ela lhe penteava os cabelos com os dedos, devagar.

— Queria escrever sobre tudo isto — disse Sandra. — Mas tenho medo de estragar com palavras o que só se entende com o corpo. E estou mais habituada a registar aquilo que sonho.

— Então escreve. Escreve que eu quero ler tudo. Escreve acerca de um mundo novo onde o amor não pede licença para entrar.

— Achas que é isto a que chamam de recomeço? — murmurou Sandra.

— Não. Isto é o meio. O centro. O que vem depois da espera e antes da promessa. É o agora. E o agora nunca mente.

Ficaram deitadas por horas, falando de tudo. De infância, de perdas, de vícios de linguagem e de mutismos herdados. Riram de coisas pequenas. Partilharam medos antigos. Deram nome às partes do corpo que ninguém nunca nomeara com ternura.

À tarde, saíram juntas. Caminharam pelas ruas devagar, como se cada passo tivesse o peso de uma escolha. Voltaram para casa de mãos dadas, com a certeza estranha de quem já se conhece há anos, mesmo sem saber.

Na cozinha, prepararam uma refeição simples. Partilharam bocados de pão como quem partilha votos. E quando anoiteceu, voltaram a amar-se. Com calma, com atenção, com escuta, não houve pressa nenhuma. A cada toque, diziam — estou aqui. A cada beijo, murmurava — ainda somos. E quando finalmente adormeceram, foi com a sensação rara de terem chegado a um destino que não era mentiroso.

Ainda antes de adormecerem, Miriam falou em voz baixa:

— Sabes, durante o confinamento senti muitas vezes que o meu corpo tinha sido confiscado por um medo maior.

Sandra virou-se, encarando-a com os olhos húmidos.

— Eu também. E tantas vezes falei com fantasmas, com as personagens que me apareceram em sonhos, e tive muitos pesadelos com a boneca Helena. Era como se a minha infância me tentasse salvar.

— E salvou?

— Talvez. A Pandemia tirou-nos o tempo, a pele, a esperança, …a tua dança.

— Tirou-me o chão.

Sandra acariciou-lhe o rosto, devagar.

— Eu deixei de escrever. A mão parecia não saber traduzir mais nada. Mas não foi medo, não foi apenas o medo. Só um imenso vazio. A cabeça encerrou as estradas das palavras.

— Eu sentia que qualquer toque me podia matar — disse Miriam, quase num sussurro. — E agora… só quero viver dentro dos teus.

Ficaram em silêncio por instantes, com as mãos entrelaçadas sobre o peito.

— Queres saber mesmo o que mais me assustou? — perguntou Sandra.

— O quê?

— A ideia de que ninguém daria por mim se desaparecesse.

Miriam apertou-lhe a mão.

— Eu dava. Mesmo de longe, mesmo em silêncio. Eu sentia quando te perdias de ti. E chamava-te cá dentro.

— Como agora.

— Como agora. Mas agora em voz alta.

A noite continuou assim, com corpos que já sabiam onde pousar.

Pela primeira vez, em muito tempo, Sandra não sonhou com Helena. Sonhou com uma cama aberta ao sol onde duas mulheres sorriam em paz.

Entre travesseiros desalinhados, copos meio cheios e corpos inteiros, escreveram o capítulo mais íntimo de um livro chamado Pandemia.

— E depois, quando isto acabar? — perguntou Sandra baixinho,

— Acabar? Porquê? Vamos seguir em frente. Porque não existe outra escolha — respondeu Miriam, a sorrir. — Obrigada por estares aqui.

Sandra retribuiu o sorriso, ali existia um elo que ninguém poderia quebrar.

— Sempre.

A luz suave da lâmpada no canto do quarto criava um ambiente acolhedor.

— Sabes — recomeçou Sandra, — o meu Nuno foi dos poucos que conseguiu tirar a carta de condução em tempo de Pandemia. Ele estava tão orgulhoso, eu quase chorei.

— Que bom. É mesmo bom, Sandra — respondeu Miriam.

— Ele tem uma energia que me surpreende, e só de vê-lo feliz, tudo vale a pena. E ele sabia, ele sempre soube o quanto eu me preocupei com ele todos os dias. A primeira Pandemia foi ele ter de lidar com o divórcio. Tentei explicar-lhe, mas foi muito complicado. Nunca é fácil um filho entender uma coisa assim, … mas ele sentia, ele sabia melhor do que o Carlos quando eu estava mais triste. Ontem ligou-me para me dizer que tinha passado no exame. E depois foi tão boa a nossa conversa.

Miriam sorriu, emocionada. — Isso é lindo, é tão bonito, Sandra. O Nuno sempre teve um jeito muito especial de te mostrar que o amor que lhe deste é único.

— É verdade — concordou Sandra, recostando-se no sofá. — O Nuno sempre foi uma luz na minha vida.

A conversa continuou a deslizar leve, naquela casa. E nesses instantes o tempo desacelerava.


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