27 - A VERDADE DITA PELA BOCA DAS OUTRAS
A tarde caía devagar sobre a casa que
fora de Albertina. Sandra mantinha-se sentada à mesa da cozinha, uma chávena de
chá entre as mãos, ainda quente. Nesses dias seguintes à morte da mãe, a casa
tinha mudado de timbre. Já não era apenas velha, era quase muda. As paredes
pareciam aliviadas por não ter de escutar gritos nem orações obrigatórias.
Miriam entrou devagar, respeitando o sossego
como se fosse uma pessoa.
— Nunca pensei voltar a entrar nesta
casa — disse ela, olhando em volta. — Está tudo igual... mas diferente.
Sandra esboçou um sorriso breve, mais
gesto do que emoção.
— Está vazia — respondeu. — Pela
primeira vez, verdadeiramente vazia.
Havia cansaço na sua voz, mas também
uma espécie de serenidade que se insinuava.
— A tua mãe sempre foi... intensa —
arriscou Miriam, puxando uma cadeira.
— Controladora — corrigiu Sandra, sem
hesitar. — A palavra é essa.
E então, com um movimento quase
ensaiado, tirou do bolso do casaco um envelope antigo, amarelado, com as dobras
vincadas e o seu nome escrito à mão.
— Encontrei isto entalado entre dois
livros guardados na mesa de cabeceira da minha mãe — disse.
Miriam estendeu a mão, mas não chegou
a tocar no papel. Só o olhou, com uma expressão de curiosidade e reverência.
— O que é?
— Uma carta. Da minha avó Gertrudes.
O nome soou na sala como um feitiço
há muito esquecido. Miriam ficou surpresa.
— A Gertrudes?! Tu falavas muito
dela.
Sandra assentiu lentamente, os olhos
fixos na mesa.
— Porque toda a vida julguei que ela
nos tinha abandonado. A mim, ao meu avô, à minha mãe. Mas afinal…
Fez-se um silêncio breve. Miriam
esperou, paciente.
— Afinal, ela fugiu. Mas não nos
abandonou. Salvou-se.
— Salvou-se de quê? — perguntou
Miriam, com suavidade.
— De se apagar. De ser invisível. —
Sandra ergueu o olhar. — Esta carta conta tudo em poucas palavras. O casamento
com o avô Faustino era muito complicado. E ela... Passou anos a engolir
palavras. A calar o que pensava. A fingir que não via. Fugiu quando percebeu
que já não se reconhecia.
Miriam levou um momento a responder.
— E a tua mãe... sabia?
— Sabia — respondeu Sandra, com amargura.
— Mas preferiu odiá-la. Era mais fácil dizer que foi ela quem me abandonou.
Gertrudes, quando partiu, deixou-me em casa na companhia do meu avô. Foi tudo
complicado para ele. Nesse dia teve de admitir que foi abandonado pela própria
mulher. A minha avó saiu de casa numa altura em que só mulheres de muita
coragem o podiam fazer.
A voz de Sandra tremia ligeiramente.
Mas continuou:
— Cresci a acreditar que a avó era a
culpada de tudo. Que tinha largado a família por puro egoísmo. Mas ela
deixou-me esta carta, Miriam. Diz que fugiu por amor. Por amor-próprio. Que não
podia ensinar-me a aceitar uma vida onde uma mulher se anula só para manter a
paz dos outros.
— Isso foi, realmente, um feito
extraordinário — murmurou Miriam.
Sandra passou os dedos pela borda da
chávena, pensativa.
— Ela escreveu que acordou um dia sem
saber quem era.
— A minha mãe também dizia isso —
confessou Miriam. — Há mulheres que desaparecem antes mesmo de morrerem. Mas
poucas têm coragem de sair pela porta da frente.
Sandra sorriu com tristeza.
— A avó Gertrudes teve. Levou uma
mala pequena e deixou tudo o resto. Ela queria que eu soubesse que é sempre possível
recomeçar. E que devo amar-me a mim mesma, essa é a primeira forma de ensinar
os outros a amarem-nos também.
— E tu... o que sentiste ao ler a
carta passado todos estes anos?
Sandra pousou a chávena e cruzou os
braços sobre a mesa. Fechou os olhos um segundo antes de responder.
— Primeiro raiva, e vergonha por me
terem escondido a carta que era só para mim. Depois... saudade, e compreensão.
— Compreensão?
— Sim. Compreensão por ela, por mim,
até pela minha mãe, no limite. Percebi que a dor que herdei não era minha. Era
dela. A Gertrudes não fugiu de mim, Miriam. Fugiu por ela, e fugiu por mim. Para
que um dia eu pudesse entender.
Miriam abanou a cabeça, emocionada.
— Vais escrever-lhe?
Sandra respirou fundo, como quem
decide.
— Já comecei. Não sei se será uma
carta, um diário, um livro. Mas preciso de falar com ela, mesmo que nunca me
leia.
— E se ela te lesse... o que lhe
dirias?
Sandra sorriu.
— Que agora entendo. Que o legado
dela não foi a ausência, foi a coragem. E esta absurda coincidência de eu
também ser uma mulher que partiu, … e se tive de partir.
Sandra levantou-se devagar, caminhou
até à estante junto à janela e pegou numa boneca. As tranças estavam feitas. O
vestido limpo. O olhar ainda meio fechado.
— E esta foi outra das grandes
surpresas do dia. Imagina quem encontrei na arrecadação no meio de caixotes
velhos, restos de toalhas, aquecedores e outras tralhas sem nenhuma utilidade.
Lavei-lhe o cabelo. Vesti-a. Pu-la ao meu lado. Tal como a carta.
Voltou a sentar-se. A boneca ficou
entre elas, como uma terceira presença.
Miriam tocou-lhe ao de leve.
— A tua avó teria orgulho nisso.
Sandra não hesitou.
— E eu? Pela primeira vez… também.
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