28 - O TEMPO QUE FICOU PARADO


Durante o confinamento, o tempo deixou de correr em linha reta. Os dias eram lentos, repetitivos, viscosos.

O novo apartamento tornara-se o seu mundo inteiro. Era ali que os dias se desenrolavam, onde as memórias voltavam, onde os fantasmas dançavam no chão de madeira com as pegadas do passado. E tudo era demasiado quieto, e apertado para uma só mulher que carregava tantas vozes dentro de si.

O divórcio com Carlos ficou resolvido na mesma semana em que disseram ter chegado a Pandemia. O mundo fechou-se. As ruas esvaziaram-se. As lojas encerraram. As escolas, os cafés, os teatros, tudo parou. E também a sua vida ficou em pausa mas, paradoxalmente, tudo começou a agitar-se dentro de si.

No início, tentou organizar-se. Fez planos. Listas. Mas logo percebeu que o tempo da Pandemia não obedecia a agendas. Era um tempo ubíquo, feito de névoas, um tempo em que os dias se confundiam com as noites e as horas escorriam sem aviso. E com ele, as memórias começaram a emergir.

Albertina, a mãe, tinha morrido poucos meses antes. Ainda sem Pandemia. Ainda com abraços e velórios. Albertina partira sem pedir desculpa, sem suavizar arestas, quase sem ternura. Sandra chorara pouco. Mas no mutismo da Pandemia foi fácil as caixas começarem-se a abrir. As memórias voltavam em flashes, e tantas ausências começaram a pesar. Nasceu então uma espécie de reconstrução. Passava horas na varanda, um quadrado de azulejos com três vasos tristes e uma cadeira dobrável. Ali, via o mundo parado, os carros imóveis. As pessoas mascaradas, e os vizinhos aplaudindo às janelas.

— Tu sabias, não sabias? — dizia-lhe às vezes. — Tu viste tudo.

Helena, a irmã-boneca não respondia. Mas a sua presença era agora um consolo. Era o elo com a criança que fora.

Durante a Pandemia, Sandra descobriu que adorava gengibre. Que detestava tofu. Que não precisava de sobremesa para se sentir completa. No frigorífico colou um papel: "Hoje escolho cuidar de mim, mesmo que só eu veja."

Começou a fazer muitas vídeo-chamadas.

— Esta Pandemia é uma imensa travessia — dizia Miriam.

Sandra assentia. E pensava que talvez já estivesse um pedacinho do outro lado.

Ouviam-se mais pássaros. E nesse intervalo do mundo, sentia-se como que flutuando entre tempos. Lia compulsivamente artigos sobre o vírus. Anotava estatísticas. Viu documentários sobre epidemias passadas, leu sobre a Gripe Espanhola, sobre Chernobyl, sobre o isolamento em mosteiros e prisões. Desejava entender, nos outros tempos, alguma chave para conseguir sobreviver a este. Revisitou fotografias antigas. Organizava álbuns como quem tenta colar os pedaços de uma identidade desfeita. Ligava a rádio. Evitava as redes sociais, mas às vezes espreitava os vídeos de italianos a cantar à janela e chorava sem saber porquê. Falava com as plantas e deu nome aos cactos. Inventou um diário de quarentena onde registava apenas cheiros e sons do dia. "Hoje a rua cheira a lixívia e a laranja. Ouve-se um cão, o sino da igreja, e o vento a arranhar as persianas."

A segunda vaga chegou como uma maré silenciosa, mais cruel na sua previsibilidade do que a primeira fora na sua surpresa. Desta vez, havia menos palmas às janelas. As pessoas estavam cansadas. O medo já não era novidade, tinha-se transformado em exaustão. A Pandemia deixara de ser fenómeno e passara a ser rotina. Sandra mergulhava num tempo espesso, onde cada dia parecia eco de outro. Continuava sozinha. O filho Nuno morava com o pai em Évora. Tinham decidido assim, por ser mais seguro para todos e por ter escolhido ir estudar na Universidade Alentejana. A última vez que se tinham visto fora no Natal anterior. A primeira vaga apanhara-a de surpresa. A segunda apanhou-a de rastos. As reuniões por Zoom já cansavam, e muitos engenheiros e técnicos raramente ligavam as câmaras. Tentava manter a energia, sorrir, repetir: "Estamos juntos nisto", mas por dentro sentia-se esvaziada. Começou a ter mais dificuldades em dormir, em concentrar-se. Lembrava-se de nomes, mas esquecia frases. Lia três páginas de um livro e não retinha nada. Na sua nova casa, cada divisão era um território. A cozinha transformada em laboratório, o quarto em santuário, a sala era ginásio, cinema e refúgio. O WC tornava-se camarim. Fazia longas caminhadas dentro de casa. Trinta voltas ao quarto e outras tantas na sala davam quase quinhentos passos. Desenhava mapas no chão com fita adesiva. Fazia listas de livros lidos, filmes vistos, sintomas sentidos, horas de sono. Memorizava frases roubadas de jornais: "Mais de 300 mortos num dia". "Vacina ainda sem data definida". "Distância, a nova ternura". Subscrições canceladas. Contas revistas. Compras planeadas com precisão quase militar. Cada saída ao supermercado era uma expedição. Passava horas na janela. Observava os mesmos vizinhos, os mesmos pássaros, as mesmas rotinas repetidas. Aprendeu o horário do carteiro, o ruído da senhora do 3ºC a varrer a entrada. Começou a reparar em pequenas mudanças, uma planta nova na varanda da frente, uma cadeira trocada de posição, uma cortina lavada. Falava com Miriam quase todas as noites. Chamadas curtas, muitas vezes em silêncio. Mas era importante ouvir aquela voz que a conhecia desde sempre e como ninguém. Miriam também lhe ligava. Riam-se. Continuavam a partilhar os absurdos do dia: "hoje chorei a ver uma série infantil". "hoje arrumei as meias por cor e estação". A intimidade nascia da banalidade.

Durante esse segundo confinamento, Miriam confessou a Sandra também ter escrito coisas detalhadas, mas sem grande nexo, numa espécie de diário. Chamou-lhe "Cartografia da Solidão". Em cada entrada, uma pequena nota descritiva do que sentia física e emocionalmente. "Dor nos ombros, ânsia por toque humano, desejo de caminhar sem medo". Juntava recortes, colagens, restos de folhas secas, fotografias desbotadas. "Quero que saibas que, mesmo longe, a minha respiração segue o ritmo da tua".

Sandra leu muito. Marguerite Duras. Annie Ernaux. Herberto Helder. Lia para procurar encontrar respostas. Ou quem nomeia aquilo que sente mas ainda não sabe dizer. Assinou uma petição por mais apoio à cultura. Ajudou um vizinho idoso com compras. Participou num grupo online de leitura. Uma noite, recitou poesia numa sala de Zoom com vinte desconhecidos. Choraram todos. Riram todos. Aquilo salvou-a durante dias.

No segundo confinamento, Sandra já não era a mesma mulher que entrara no primeiro com medo e com pressa. Estava mais lúcida, mais cansada, mais serena e mais consciente da fragilidade do tempo. O déjà-vu era desconcertante. As notícias repetiam-se. As máscaras, já parte do rosto. As mãos, secas de tanto álcool. O medo, menos pânico e mais cansaço. Durante as primeiras semanas, voltou a anotar os sonhos tidos durante a noite. Escrevia agora mais com uma mistura de humor e desespero, e procurava nos sonhos formas de nomear o que sentia. E muitas vezes, encontrava. Sandra aprofundou a escrita dos seus registos. Era mais madura, mais silenciosa. Trocou os diálogos por monólogos. Cada personagem falava agora sozinha, mas era na sobreposição dessas vozes que nascia uma espécie de eco coletivo. Era sobre confinamento, sim, mas também sobre aquilo que ela herdara das mulheres que vieram antes de si. Os sonhos serviam-lhe respostas com lágrimas, e tocavam em algo essencial. Ensinavam-lhe a cuidar de si. E cuidava. Do corpo. Do sono. Da casa. Da memória. Da escrita. De Firmina. De si.

  


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