29 - CARTOGRAFIA INTERIOR DE UM CONFINAMENTO
Era janeiro de 2021. O país entrava
novamente em estado de emergência. Em Lisboa, os números de internamentos por
COVID-19 batiam recordes. No dia 15, o novo confinamento geral foi anunciado
por António Costa. Fecharam as escolas, o comércio não essencial e foram
declaradas limitações severas à circulação. No mesmo dia, a OMS alertava para a
variante britânica B.1.1.7, que se tornava dominante em território europeu.
A 28 de janeiro, Portugal registava
303 mortes num só dia, o número mais elevado desde o início da Pandemia. Nos
hospitais, faltavam camas. No Amadora-Sintra, instalaram tendas no exterior
para dar resposta à afluência. A televisão passava imagens de ambulâncias em
fila, de profissionais de saúde exaustos, de olhos vermelhos atrás de viseiras
embaciadas. Sandra assistia a tudo do sofá. Sabia-se protegida, isolada, mas o
sofrimento coletivo entrava-lhe em casa pela televisão e atravessava-lhe o
peito.
No mesmo mês, o presidente Marcelo
foi reeleito com 60,7% dos votos. Sandra não votou. Sentiu-se culpada. Mas na
manhã das eleições, o medo de sair falou mais alto. A Pandemia ensinava-lhe,
todos os dias, que o instinto de sobrevivência era um músculo antigo,
primitivo.
Em fevereiro, a vacinação começou a
acelerar. As primeiras doses eram administradas a profissionais de saúde, a
idosos e residentes em lares. Sandra seguia o plano de vacinação com esperança
contida.
A casa era acolhedora, mas Sandra usava
três pares de meias, um cachecol e um gorro para ler na varanda, enrolada numa
manta, como se estivesse em pleno século XIX. As noites eram longas. Por vezes,
adormecia com o livro ao colo.
Lá fora, o mundo ardia de outras
formas. Em 6 de janeiro, nos Estados Unidos, apoiantes de Donald Trump
invadiram o Capitólio. Sandra viu tudo em direto, e ficou em estado de choque. Aquilo
era bem pior do que um filme de mau gosto. "Isto também é uma Pandemia",
anotou. No Brasil, Bolsonaro continuava a negar a gravidade da Pandemia
enquanto na Índia explodia uma variante ainda mais contagiosa. Tudo aquilo
tinha o condão de a trespassar, ainda que vivesse entre quatro paredes. Começou
a assinalar com pins coloridos os surtos, as novas variantes, e os progressos
da ciência. Eram tudo forma de se manter ligada, de compreender o alcance do invisível.
Em março, chegou-lhe a notícia da morte de Teresa, uma antiga colega que tinha
ido trabalhar para o Norte. COVID. Não se falavam há anos, mas a notícia
atingiu-a como uma lança. Sandra ficou paralisada. Mais um nome na lista dos
que partiam sem despedida. Imaginava como tantas mulheres, sozinhas como ela,
enfrentariam esta solidão imposta. Seriam também as memórias as suas únicas
companhias?
A primavera chegou, tímida. As
varandas voltaram a encher-se de sol. As árvores floriram. Começaram a circular
rumores sobre a reabertura faseada. As escolas reabririam em abril. Os cafés,
em maio. O país reabria aos poucos, como um corpo convalescente que ensaia os
primeiros passos.
Sandra recebeu a primeira dose da
vacina a 14 de maio. Esperou na fila. Chorou ao voltar para casa, mas aquelas
foram lágrimas de alívio.
No dia 10 de junho, Dia de Portugal,
Sandra foi à feira do livro. Comprou três livros de poesia e sentou-se num
banco de jardim onde viu crianças a correr. Alguns casais beijaram-se com a máscara
no queixo. Sentiu algo a renascer. Desceu a avenida sem qualquer pressa, apenas
com o desejo calmo e profundo de caminhar até ao rio. Quando chegou junto às
águas do Tejo, deteve-se por um momento. Respirou profundamente. Nesse instante
compreendeu, com ímpar nitidez, que, mesmo atravessando longos e estéreis
vazios, ela permanecera viva. Sobrevivente. Inteira.
Comentários
Enviar um comentário