31 - AS VOZES QUE FICARAM
Sandra decidiu vender a casa da
Figueira. A resolução surgiu numa manhã limpa de setembro, enquanto tomava o
café na varanda do apartamento em Lisboa. Algo nela se apaziguara e lhe dizia
que tinha chegado a hora. Decidiu com a firmeza de quem concluiu um processo
longo e necessário. Ligou à agência imobiliária, marcou uma avaliação, e
começou a organizar mentalmente o que teria de ser feito. Sabia que não podia
manter a casa por mero apego emocional. A venda era inevitável. Agora era o
tempo certo para fechar esse ciclo.
Telefonou a Miriam que logo se ofereceu
para a acompanhar. Às oito da manhã, já ambas ocupavam os seus lugares, com Sandra
ao volante. Partiram de Lisboa num ambiente de trânsito semi caótico e o café
ainda por tomar.
— Então é mesmo hoje, Sandra?
— É hoje, Miriam. Já não há como
voltar atrás. Sinto que estou a fazer o mais sensato, e nem sei explicar
porquê. Refleti o suficiente, e não me dói, sabes? Pelo menos, não como antes.
Está tudo confirmado com a mediadora. A casa vai ser listada na próxima semana.
— Estou contente por ti, Sandra,
muito contente. Sei bem o quão difícil foi teres chegado a esta decisão. Mas há
dores que deixam de doer quando a gente percebe que estavam só a impedir-nos de
andar, não é?
Sandra assentiu, atenta à
estrada que agora se abria. A paisagem ia surgindo com maior tranquilidade e
com ela, muitas memórias:
— Sabes que até sonhei com o
quintal esta semana? Estava lá a avó Albertina, com um avental branco e as mãos
cheias de uvas, e o avô Faustino a tentar pendurar um pano no estendal, sempre muito
desajeitado. — contou, com a voz levemente embargada.
— Tu tens os sonhos mais
cinematográficos, Sandra. Às vezes acho que não são bem sonhos, mas sim…
visitas. Talvez eles quisessem saber se está tudo bem contigo antes de fechares
a porta pela última vez.
— Agora tenho a certeza de que já sou
outra. Ou, pelo menos, alguém mais honesta consigo mesma. O tempo da Pandemia
destruiu muita coisa, mas ajudou a sarar muitas feridas. A morte da minha mãe,
a mudança apressada para o novo apartamento depois do divórcio, os silêncios...
enfim, tudo veio à tona. E a decisão de vender a casa terá sido o último
reflexo.
— Lembro-me quando me disseste que
não podias vendê-la. Que isso seria como apagar uma parte da tua identidade.
— Eu sei, mas já passou muito tempo
desde esse dia. E eu sinto-me estranhamente bem com a decisão. Há uma espécie
de leveza nisto tudo, Miriam. Há casas que têm cheiro a tempo e já não se
tratava de a guardar ou preservar, mas deixá-la ir com cuidado. Eu transportarei
sempre essa casa comigo, só que sem precisar de paredes.
Do lado de fora dos vidros semiabertos,
o som do trânsito chegava em ecos difusos.
— Ontem estive a arrumar as prateleiras
da sala e encontrei o álbum com as fotos da nossa última semana em Sesimbra. Tu
tinhas aquele olhar, lembras-te? Meio suspenso, meio em dúvida. Parecias querer
dizer alguma coisa e não conseguias.
— O Carlos foi tão idiota comigo, na
véspera fez uma cena tão estúpida por causa disso. Detestou que eu não tivesse
cancelado a nossa semana a duas. Ele lá tinha as suas razões, mas eu precisava
tanto de me afastar dele naquela altura. Precisava mesmo daquele tempo contigo e
de distância para respirar. Todos os dias eu sufocava mais um pouco, Miriam.
Aquilo já era muito mais do que o princípio do fim do casamento. Já estava tudo
a ruir por dentro.
— E agora? — pergunta Miriam com
olhos expectantes
— Agora, tu e eu fazemos muito mais
sentido.
Pararam na estação de serviço
de Santarém para, finalmente, tomar o pequeno-almoço. Depois compraram dois
pacotes de bolachas e uma revista. Eram dez e cinco quando regressaram à
estrada para cumprir o resto da viagem.
— Rimos tanto em Sesimbra. Bebemos
tanto e dissemos imensas parvoíces. Contámos segredos uma à outra. Dissemos
coisas que nem sabíamos sentir ainda. — Disse Miriam, reclinando ligeiramente a
cadeira.
— Eu sabia que um dia tudo iria
acabar. E sabes porquê? Não queria cair na mesma armadilha dos meus pais. Quando
estivemos juntas essa semana, relembrei vividamente as noites em que ouvia os
meus pais discutir e eu sempre a fingir que dormia. Eu era tão miúda ainda. Foi
ali que eu soube que já não podia continuar. Era inverno, quase Natal quando
uma das maiores discussões aconteceu. E eu só queria desaparecer. — Sandra
falou com a leveza de quem já não dói.
— Mas agora não precisas de
desaparecer, “miúda”. Estás a conseguir resolver tudo isso em ti. E isso é lindo,
Sandra. Isso é crescer com coragem. — afirma Miriam chegando-se a ela para a
beijar.
Chegaram à Figueira um pouco
antes do meio-dia. Almoçaram num restaurante perto de Buarcos, e abriram a
porta de casa ao início da tarde. Miriam guardou a chave no bolso das calças de
ganga. A entrega formal à agência imobiliária estava marcada para a manhã
seguinte. Nada ficaria por resolver.
— Estou feliz por fazermos isto
juntas — disse Miriam, olhando-a com emoção.
— Também eu. Tu és a minha
família escolhida, Miriam. Sempre foste. Agora sei que vou ser capaz de fechar
de vez esta porta como se fecham os bons livros. Com muito respeito. E com muito
amor.
Sorriram as duas. O mundo, lá
fora, mantinha o seu ritmo. Mas dentro de casa, entre elas, apenas um tempo
suspenso.
Passaram a tarde em atividades
práticas. Abriram gavetas, separaram os últimos papéis importantes, decidiram o
destino de livros e alguns objetos. Miriam foi guardando numa caixa os itens
que Sandra, quase sem pensar, considerava indispensáveis. Alguns cadernos
antigos da avó, uma tigela de esmalte azul onde colocava fruta, as últimas
fotografias a preto e branco dos avós sorrindo no quintal.
Por volta das cinco e meia da
tarde, sentaram-se à mesa da sala. Fizeram um café num fogão já quase obsoleto,
e comeram as restantes bolachas.
— Amanhã será um bom dia para
entregares a chave… — disse Miriam.
Sandra abriu um pequeno caderno que
estava pousado sobre a mesa. Dentro, havia anotações antigas da avó Gertrudes.
Compras. Receitas. Fragmentos de frases sem contexto
— Acho que escolhi coisas a mais.
Tinha dito que iria escolher muito menos do que isto. Um caderno, talvez um
retrato dos avós e uma tigela de barro. Só para ter à vista. Mas o resto… acho
que não faz mais sentido.
— E tu fazes sentido, agora? —perguntou
Miriam.
— Estou a reaprender, é sempre um dia
de cada vez. Mas acho que sim. Dei por mim a escrever mais. Voltei a conseguir dormir
oito horas. É estranho como o tempo muda quando deixamos de esperar por alguém.
Não sei porquê, mas recordo-me daquele dia em que a minha mãe gritou comigo por
causa da Helena. Ainda hoje consigo escutar aquele guincho. Mas agora... não me
dói. Nem me culpabilizo. Foi só mais um momento. Entre tantos.
— Cresceste com esta casa, Sandra.
Vai ser só um bocadinho estranho não poderes cá voltar.
— Talvez. Mas há estranhezas que
libertam.
Miriam não respondeu logo. Depois,
disse apenas: — Quando assinares o contrato, vais sentir-te liberta. E quero
ver o teu sorriso nessa hora.
— Prometo.
Sandra continuou a remexer em algumas
das coisas que estavam espalhadas em cima da mesa. Depois do café, Sandra e
Miriam passearam pela casa. No quarto onde Sandra habitualmente dormia ainda
descansava a sua pequena secretária verde-clara. Sobre ela, o reflexo da janela
formava um quadrado de luz limpa. Nada mais precisava ser dito ou guardado. A
casa seria vendida. Seria habitada por outros. Teria outras vozes, outras
rotinas. Sandra não deixaria instruções. Nem homenagens. Partiria em silêncio,
como se deve partir de um lugar onde se foi feliz e infeliz na mesma medida. O
cheiro familiar de madeiras e móveis antigos despedia-se com imenso carinho.
Não havia dor, apenas um reconhecimento tranquilo. A casa parecia aceitar o
desfecho. As duas percorreram os corredores com naturalidade, abriram janelas,
os cantos respiraram os perfumes que chegavam do exterior. Sandra fotografou os
últimos detalhes para mostrar à mediadora e guardou as memórias daqueles
lugares sem nostalgia, sem romantismo.
Nessa noite, depois de uma refeição
simples, Sandra e Miriam subiram até um dos quartos e amaram-se com paixão.
Na manhã do outro dia, Sandra fechou
a porta sem olhar para trás. O ciclo estava mais perto de se completar.
— Obrigado por tudo, Miriam! Agora
sei que, finalmente, está tudo em ordem. Vai ser mesmo vendida.
— E estás... bem?
— Estou resolvida. É isso. A casa
cumpriu a sua função. Há espaços que servem para crescermos, outros para
sofrermos. Esta fez as duas coisas. Agora, preciso de olhar em frente.
Miriam esperou alguns segundos, e
depois disse; — Nem sei bem se acredito. Nem sei se é verdade. Mas tu foste
incrível em tudo. Sinto que conseguimos chegar as duas inteiras até aqui,
Sandra. A Pandemia obrigou-te a tanto... obrigou-nos a tanto. E tu, ainda antes
do confinamento, tiveste de lidar com a morte da tua mãe, com o Carlos a sair
de casa, e depois o mundo inteiro a fechar-se naquele casulo desconhecido.
Compreendo que esta casa tenha funcionado para ti como uma espécie de aliada. A
tua última testemunha.
— Uma testemunha que me libertou.
Esta casa ajudou-me a compreender que amor não é sinónimo de conservação. Há
imensa ternura também em sabermos deixar ir.
Houve um silêncio curto. Depois
Miriam perguntou. — Vamos?
— Vamos. Uma jarra, um quadro, o
caderno da minha avó e um prato antigo pintado à mão. E acabei por trazer
também aquele outro prato de esmalte azul.
— Aquele onde a tua avó punha uvas? É
bem bonito.
— É. E é suficiente. O resto vai com
a casa. Vai ser de quem vier.
— Sentes que estás a deixar alguém
para trás?
— Não. Sinto que os trago todos
comigo. A mãe, o pai, o avô, a querida avó Gertrudes. Até a Helena, na sua
ausência. Cada um deixou uma marca profunda. E agora, em vez de conservar móveis,
guardo o que é essencial. As histórias. E o que eu própria vivi aqui.
Miriam suspirou. Sandra ligou o
carro. Um miúdo corria no passeio. A vida seguia em fundo.
— Quando os novos donos assinarem o
contrato de compra e venda, liga-me. Mesmo que não digas nada. Quero ouvir o
som da tua respiração nesse momento.
— Prometo. Vai ser apenas mais uma
travessia.
Até ao prédio da imobiliária ninguém
disse mais nada. A manhã entrava suave pela janela da viatura. Sandra
compreendia que nem todas as raízes são para manter, algumas servem apenas para
nos lembrar os locais por onde passámos. Entregou as chaves na agência, assinou
os últimos documentos. Depois voltaram de imediato para Lisboa, sem lamentos,
sem mágoas. A casa deixaria de ser sua, mas o que a casa lhe dera, isso,
ficava, como uma voz interior que já não precisava de paredes para ser escutada.
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