32 - RETORNO IMAGINADO
Já tinham passado algumas semanas
desde a venda efetiva da casa quando Sandra resolveu, finalmente, partilhar com
Miriam um episódio que a vinha consumindo. Era uma tarde limpa de outono.
Estavam sentadas numa esplanada modesta em Alcântara, diante de um Tejo
imaculado. Entre elas corria um sossego próprio de quem já dispensa palavras.
— Há uma coisa que nunca te contei —
começou Sandra, mexendo ao de leve na colher pousada no pires. — Dormi alguns
fins de semana na casa da Figueira antes daquela última visita em que me
ajudaste a preparar a venda.
Miriam ergueu os olhos, atenta. Não
respondeu, apenas acenou. Percebeu que a história que vinha a seguir era
daquelas que não se devem interromper.
— Numa dessas manhãs de sábado,
acordei em casa dos avós com uma sensação difícil de explicar. Era como se o
meu corpo não me pertencesse, como se o tempo, dentro daquela casa, se tivesse
dobrado sobre si mesmo. Senti-me deslocada, habitando uma outra época.
Vesti-me, peguei nos óculos escuros que quase esquecera e saí de casa, com a
ideia de caminhar até à praia, ainda vazia àquela hora da manhã. Ao chegar ao
areal senti algo incontrolável a crescer em mim. Um chamamento intenso
arrastou-me até ao café onde o avô passava as tardes inteiras a jogar dominó.
Foi tão enérgica a chamada que em pouco tempo lá cheguei. Só que aquele lugar,
que eu sabia ter sido remodelado, tinha voltado a ser o velho e antigo café do
balcão de mármore e mesas de tampo igual. Diante de um mundo em que tudo
mudara, aquele pequeno lugar tinha permanecido assim, sem nenhuma explicação.
Sandra contou a Miriam o que sentiu
ao entrar. Agora dava forma ao que a mente ensaiara tantas vezes desde então.
— Entrei no café e vi-a, Miriam. Juro
que a vi. A minha avó! Sentada numa das mesas junto à porta. Trazia um lenço na
cabeça, um casaco largo e uma mala pequena pousada ao lado. Estava de costas,
mas reconheci-lhe os gestos, a forma como segurava a chávena, como respirava. Era
ela, Miriam. Tive a certeza, naquele instante tive a certeza, mas… depois
hesitei, não podia ser Gertrudes. A figura era nítida, mas uma névoa levantou-se
entre as minhas lembranças e desejos. Estaria boa da cabeça? Eu, ali sentada
tão perto da minha avó. Seria possível? Petrifiquei, fiquei completamente
imobilizada, sem coragem. Os olhos encheram-se de lágrimas, tudo ficou
desfocado num segundo. E quando, por fim, consegui ver com nitidez... a cadeira
já estava vazia. Ela tinha desaparecido, como se nunca tivesse estado ali. Levantei-me
de imediato e corri até à porta, olhei para todos os lados, procurei-a na rua,
nas lojas, no largo, e do outro lado junto à praia. Nada. Fiquei para morrer. Depois
fui perguntar ao dono do café se tinha visto aquela senhora por ali
ultimamente. Ele foi evasivo na resposta. Disse que uma senhora idosa costumava
por ali aparecer, de vez em quando. Ficava sozinha, sempre. E calada. Nunca lhe
dissera o nome. Podia ser ela. Mas também podia não ser. Eu sabia disso. Só que
tudo me dizia que era ela. Mesmo sem provas — contou Sandra, com os olhos fixos
no rio.
— Às vezes não precisamos de confirmar
o que sentimos, Sandra. Há verdades que nascem daquilo que se pressente. E, no
teu íntimo, nessa manhã de sábado, tu soubeste, tu reconheceste-a como nunca
antes. Mais real do que alguma vez a sentiste em todos estes anos, não é
verdade?
— Sim, tens razão. E semanas depois,
recebi pelo correio uma encomenda sem remetente. Era um pequeno caderno fechado
por um laço azul, embrulhado com delicadeza. E juro que a caligrafia era dela,
Miriam. Igualzinha à carta que me escreveu, igual aos bilhetes e receitas que guardava.
Fiquei com a certeza de que o presente era uma espécie de resposta. Ao vê-lo, pensei
logo nesse sábado. Seria aquele caderno uma resposta, ou uma despedida?
— Sandra, tu sabes que a tua avó
sempre foi uma mulher de convicções. E tudo o que ela viveu não foi mentira.
Foi uma vivência interna dificílima e tão legítima quanto qualquer encontro.
Ela leu-te e releu-te quando eras pequena. Bem cedo reconheceu em ti as linhas
que tinhas por preencher. No teu modo de dizer as coisas, na tristeza precoce,
nas tuas pausas. E todos os erros lhe eram familiares.
Miriam não disse mais nada durante
alguns minutos. Depois, segurou-lhe na mão.
— Talvez ela tenha voltado só para se
despedir. Sabia que tu estavas pronta. E quis, sem palavras, passar-te essa
certeza.
Sandra sorriu. Um longo sorriso, sem
angústia. E confirmou — Talvez. Se ela esteve ou não no café, já nem me
importa. Se tudo foi invenção minha, então foi muito necessária para a minha
vida. E não sei porque tive receio de parecer ridícula se te contasse o que
acabei de te dizer. Não preciso de provas, Miriam. Naquele sábado aprendi a
praticar a forma mais serena e mais profunda de reencontro. Aquela que se dá
inteiramente dentro de nós.
Sandra julgou reconhecer a avó na
penumbra do café. Um caderno chegou, mais tarde, em forma de presente, ou
confirmação. Naquele sábado, igual a tantos outros, o tempo voltou atrás e
depois parou. E uma ausência transformou-se em presença pela força intrigante da
memória.
Do outro lado do rio, um barco
deslizava vagaroso. A cidade continuava em movimento. Entre Sandra e Miriam
crescera um entendimento profundo. E um amor que compreende bem o peso dos
silêncios herdados.
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